The Tree House (Nhà Cây, 2019, “Casa na Árvore”) é o segundo longa-metragem de Trương Minh Quý (1990-), diretor nascido em Buôn Ma Thuột, nas Terras Altas Centrais (Central Highlands) do Vietnã. Em 2017, seu curta documental How Green The Calabash Garden Was (Vườn Bầu Xanh Tươi, 2016, “Quão Verde era o Jardim de Cabaças”) venceu um dos Prêmios de Aquisição Acervo Sesc de Arte no 20º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil.
Tendo como ideia original a imagem abstrata da memória de uma casa solitária em uma montanha, no presente longa, Trương reflete poeticamente sobre as diversas facetas da ideia de casa a partir do fictício e do documental (e aproxima-se da etnologia), do pessoal e de experiências indígenas locais.
Marte, 2045, longe de casa. Um cineasta no planeta vermelho, que tanto habita nosso imaginário ocidental de fascínio pela ideia de vida em outros corpos celestes (inevitável recordar-se aqui do artigo de 2006 do antropólogo Tim Ingold: Repensando o Animado, Reanimando o Pensamento), decide realizar um filme.
A premissa emprestada da ficção científica que foge da grandeza e da atração pelos avanços científicos modernos pode até nos lembrar do sci-fi humanista Solaris – livro escrito por Stanisław Lem (1921-2006) em 1961 e transformado em filme dirigido por Andrei Tarkovsky (1932-1986) em 1972 – sobre a busca por vida em outros planetas: “Estamos somente procurando o homem. […] Precisamos de espelhos. Não sabemos o que fazer com outros mundos. Basta-nos um único mundo, o nosso próprio. […]”.
Mas o foco de seus devaneios não são as possibilidades de encontro com um outro em algum ponto da galáxia, e sim a própria constelação de memórias e experiências humanas de sua casa, a Terra, mais especificamente o Vietnã e sua região das Terras Altas Centrais. De forma ensaística e aberta, o cineasta em Marte aproxima histórias de certos indivíduos ou povos indígenas vietnamitas (como os Rục, Kor e Jrai), afetados pela Guerra do Vietnã (1955-1975), às suas reflexões sobre casa, memória e identidade.
Por meio do tom ensaístico e errante, são reunidos fragmentos não-lineares de imagem, som ou texto. São divagações e memórias abstratas do narrador em voice-over; são materiais de arquivo; são histórias e recordações contadas por indivíduos dos povos indígenas vietnamitas; são os olhares observadores sobre suas vidas cotidianas. Partículas de pó flutuantes de passados que se fazem memória e confundem-se com constelações – ou as penas vacilantes em Morakot (2007) de Apichatpong Weerasethakul (1970-).
Através da Sra. Hậu, o filme se aproxima do povo Rục, que se mudavam de uma caverna para outra ao fugir dos soldados estadunidenses durante a Guerra do Vietnã. Até então habitantes desses locais, o povo Rục sofreu um processo de assimilação no qual foram ensinados a cultivar arrozais e deslocados para casas idênticas construídas de tijolos. Atualmente entre as novas habitações e as antigas, a caverna hoje é a memória de um lar passado, de uma origem, de uma infância.
Outra história é a do filho e pai da etnia Kor que foram identificados vivendo na floresta após fugirem quando tiveram a casa bombardeada durante a Guerra do Vietnã. O filho, Sr. Lang, recorda que habitou a floresta há mais de quarenta anos com seu pai, atualmente falecido, e que ali construíram sua casa em uma árvore, hoje queimada.
A casa para o povo Jrai não é exclusiva deste mundo dos vivos, mas também dos mortos. As almas de seus falecidos são abrigadas nas casas de mortos como memórias para receberem visitas dos saudosos. Estabelece-se, na sequência, uma relação entre o positivo e o negativo da imagem, e o positivo e o negativo do corpo visível e do espírito invisível.
A plasticidade do meio audiovisual habita o filme como um corpo imagético e sonoro manipulado, capaz somente de efetuar sua operação de abertura para um mundo imaginado e altamente sugestivo, que se torna potência através de seu fazer fílmico incapaz da total apreensão de tal constelação.
A atitude discutível – próxima talvez dos soldados estadunidenses que levaram consigo, em 1967, câmeras para documentar o deslocamento de habitantes de Quảng Ngãi (lugar que o cineasta também foi com uma câmera para realizar filmagens) de seus lares para casas reassinadas; suas antigas moradias foram depois queimadas para que os comunistas não a usassem – de apreender o mundo e a experiência humana como um material para a realização de ideias do criador (afinal, o realizador se apropria de histórias e imagens de outros povos para compor uma rede inter-relacionada em um ensaio audiovisual sobre lar), é também reconhecida pelo autor, de modo que a reflexão sobre suas implicações fiquem por parte do espectador.
O diretor realiza uma proposta ambiciosa, experimental, e ao mesmo tempo consciente de sua limitação e fragilidade como trabalho cinematográfico enquanto corpo, na qual suas experiências e memórias se justapõem as de outros dos povos indígenas vietnamitas numa confluência opaca entre presente e passado; vida, morte e sobrevivência; o real e o imaginado; entre lar, memória e identidade.
A obra de Minh Quý Trương é um convite para nossa imaginação – como preservamos nossas memórias, de que maneiras elas habitam e atuam no nosso presente feito de deslocamentos, dependente também da imagens fotográficas?
O filme atualmente está em exibição na plataforma online MUBI Brasil como um dos destaques do Locarno Film Festival de 2019.