Drive my car (ドライブ·マイ·カー, Doraibu mai kā, 2021) é o décimo segundo longa-metragem da carreira do diretor Ryūsuke Hamaguchi (1978-) e foi o vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2022. Além disso, o filme coleciona outros prêmios como o de Melhor Roteiro no Festival de Cannes em 2021. O filme conta a história de um bem-sucedido diretor e ator de teatro que dois anos após a morte da esposa, aceita uma residência artística no Festival de Teatro de Hiroshima para realizar uma montagem de Tio Vânia (1898) de Anton Tchekhov (1860-1904).
Apesar de baseado no conto homônimo do livro Homens sem Mulheres (2014) de Haruki Murakami (1949-), é notório que o roteiro se utiliza também do conto Sherazade, do mesmo livro, para a narrativa que constitui o prólogo do filme. Uma rápida menção a Esperando Godot (1954) de Samuel Beckett (1906-1989) e a utilização de Tio Vânia também compõem o arsenal de referências do diretor, que valoriza muito os diálogos bem construídos.
Os roteiros de Hamaguchi, como o de seus filmes Happy Hour (ハッピーアワー, Happī Awā, 2015), Roda do destino ( 偶然と想像, Gūzen to Sōzō, 2021) e também o de filmes que não dirigiu como A mulher de um espião (2020) dirigido por Kiyoshi Kurosawa, destacam-se por uma dramaturgia de diálogos precisos encaixados numa complexa rede de relações sociais. O que às vezes pode soar banal quando dito, esconde nuances que vão se revelando ao longo dos filmes. Em Drive my car, a habilidade com que o diretor monta esse quebra-cabeça de metáforas e estilo é uma das características mais marcantes das quase três horas de duração do filme.
Uma das metáforas mais evidentes tem a ver com o próprio título do filme, que ao mesmo tempo em que remete a uma música dos Beatles, também diz respeito ao fato de que o personagem principal Yūsuke Kafuku precisa locomover-se com uma motorista durante sua residência em Hiroshima. A posição inicialmente incômoda no banco de passageiros logo se torna confortável quando ele descobre que sua rotina, que incluía decorar as falas das peças em que trabalha enquanto anda de carro, não será alterada.
A posição de passageiro sendo levado por um motorista é oportunamente similar à dos espectadores e espectadoras no cinema. Os carros e veículos motorizados, além de contemporâneos ao aparecimento da sétima arte, também constituem parte significativa e importante das primeiras expressões cinematográficas. Câmeras posicionadas em cima de trens em movimento deram origem às chamadas “viagens fantasma” ou “ghost rides“, que possuíam esse nome por parecerem flutuar pelos trilhos. Como metáfora do cinema em si, que se constitui de forma geral de imagens em movimento, a figura do passageiro do carro leva a duas reflexões. A primeira de não possuir agência sobre seu próprio deslocamento, uma vez que outra pessoa está dirigindo, e a segunda de poder assistir ao próprio movimento da vida a partir duma posição privilegiada pelo enquadramento da janela do carro. Ambos os pontos podem ser relacionados com a arte cinematográfica.
Ao se deparar com a posição de passageiro, o personagem Kafuku encontra a possibilidade de refletir sobre a própria vida, sem deixar de se mover por ela e de amadurecer com a ajuda da sabedoria que os diálogos de uma peça de teatro como Tio Vânia pode carregar. Iluminado pelas falas que escuta repetidamente, a sincronia com situações de sua própria vida provocam catarses que também podem acontecer enquanto assistimos a um filme.
Outra aproximação cara ao cinema e que pode ser pensada a partir do filme é a do corte e da montagem. O elenco escolhido por Kafuku para a montagem da peça de Tchekhov fala línguas diferentes que incluem japonês, coreano, linguagem coreana de sinais e mandarim. Para decorarem a cadência da peça e quando devem responder uns aos outros, os atores e atrizes acostumam-se com a sonoridade das falas e pontuam suas deixas com batidas na mesa durante os ensaios. A deixa funciona como corte, enquanto as palavras em línguas diferentes transformam-se para o elenco em impressões em que se sabe o que está sendo falado por conta das traduções, mas não se sabe exatamente como está sendo dito. O que fica dessa dinâmica é a construção dos afetos entre os personagens e a atuação de cada um dos atores e atrizes.
Muitas vezes os cortes do cinema funcionam de modo similar, enquanto separadamente duas imagens podem ser completamente díspares ou neutras, a relação criada de sua justaposição adquire um novo contexto e significado. Na situação criada no filme, a impressão de disparidade de comunicação entre línguas diferentes é substituída pela relação que se constitui entre as duas pessoas na peça.
Os teóricos russos do cinema exploraram avidamente essa relação, que foi encapsulada na ideia do efeito Kuleshov, mas talvez seja interessante nesse caso evocar o diretor Sergei Eisenstein (1898-1948) que via na própria escrita japonesa um paralelo com a montagem no cinema. Para Eisenstein, a combinação de dois ideogramas que resultava em novos significados era similar à montagem no cinema que criava contextos intelectuais a partir de planos neutros em significado.
Assim como os kanji para Eisenstein, o cinema de Hamaguchi é rico em significados e combinações. O acaso, outra característica marcante de seus filmes, possibilita uma imprevisibilidade de situações e pontos de virada. O passeio de carro, que deveria ser de um ponto inicial a um ponto final, fica parecendo mais com a vida entre nascimento e morte. Não sabemos se um imprevisto pelo caminho ou um convite de última hora irá mudar nossos destinos, mas sempre serão novas oportunidades para sentar e aproveitar a carona. Assim como a vida, nem sempre será possível apenas observar o que acontece como passageiro ou então ser levado pelo destino dos outros como uma motorista sem rumo, mas quem sabe do encontro entre essas pessoas surja algo novo.
Drive my car está atualmente em exibição na plataforma online MUBI Brasil e em cartaz nos cinemas.
Alexandre
Muito interessante a relação dos kanji aos cortes.
O fim do filme surpreendeu. Eu acho que as metáforas do fim, se eu soubesse ler japonês, iriam acrescentar muito. Parabéns