O chefe da estação é alto e austero.
De seus braços correm movimentos síncronos aquém das montanhas
onde os declives se perdem…
e a locomotiva da vida segue…
nas imagens da menina que partiu da escola de Biyoro
com a boneca nas mãos, atravessando a plataforma onde a neve
cresce em sonhos, em ontens-de-reviver, em amanhãs de não-existir.
A casa da estação é alva e abriga todos os pertences esquecidos
menos o medo que é de todos e, mais, dos que silenciam
os barulhos dos trens que sempre partem
para aquém dos montes verdes, cobertos em neve
e das flores que só se vêem na primavera e no verão.
A casa da estação é clara pela manhã e lá dorme o seu chefe
acorda cedo, prepara as chegadas e partidas
e registra os feitos ao fim do dia
quando a luz vai caindo feito a neve na locomotiva…
As minas de Horomai acentuaram os laços de fraternidade
onde os cristais de gelo verão sempre a claridade
e os amigos bebem a amizade na Locomotiva do(s) neto(s)
que, para sempre, irão chorar a partida da menina de neve, Yukiko…
A estação é pequena e um pouco cinza, mas lá chegam muitas notícias
de longe, aonde vão os jovens estudantes, e de onde partem
com sorrisos, enlevados, pelos sonhos-de-amanhã-ser
apenas na lembrança das flores, cristais de gelo, lavandas, campos coloridos
de Hokkaido, onde a noite e a neve se encontram…
A estação da vida é grande e cabe nas colinas para além da lagoa azul
onde o sal do mar é o céu de todos os amanhãs
e os sonhos se desfazem em sol para salutar
todas as meninas e suas bonecas imaginárias
na luz da manhã que encontra a neve e o som
da locomotiva agora silente – ascendeu para além da montanha –
o chefe da estação…
Na vertigem da vida, no avanço dos trilhos… – por que poetisar Poppoya?
Porque Poppoya é um poema. Os trens são metáfora clássica das passagens da vida, dos rumos diários disponíveis, do tempo que se esvai e, quando regressa, já é o traçado de nova jornada. Os trilhos são os rumos que escolhemos na vertiginosa viagem do tempo em nossas vidas… e as nossas vidas neles se desvelam…
Num país como o Japão, os trens têm se mostrado como um eficiente, exemplar meio de transporte. E o desejo de que o Brasil seguisse esse exemplo é imenso, tão grandioso quanto as dimensões continentais desta terra de tantas paisagens… As pontas das distâncias Brasil-Japão se unem na realidade e no sonho da rapidez sustentável dos trilhos, nas trilhas que construímos entre utopias, distopias e novas utopias, no ponto de convergência da locomotiva idílica da eficiência e da locomotiva onírica dos afetos…
O filme Poppoya – traduzido ao inglês como Stationmaster (“Chefe de estação“) e Railway Man (“Homem Ferroviário“), por causa de outro filme italiano de 1956 consagrado como Railroad Man – foi dirigido por Yasuo Furuhata (1934-2019) e lançado em 1999, sendo uma adaptação do livro de contosescrito por Jirō Asada (1951-), The Stationmaster and other stories (“O Chefe de estação e outras histórias”), vencedor de dois prêmios, um deles, o Naoki Prize em 1997. Eleito o Melhor Filme pelo Prêmio da Academia Japonesa, é estrelado por Ken Takakura (1931-2014), no papel de Otomatsu Sato, o chefe da estação Horomai que está prestes a fechar antes de ele se aposentar, tendo se dedicado integralmente a este trabalho. O seu grande amigo Senji Sugiura é interpretado por Nenji Kobayashi (1941-) e as atrizes Shinobu Otake (1957-) e Ryōko Hirosue (1980-) também abrilhantam a narrativa cinematográfica ao lado de Hidetaka Yoshioka (1970-), Masanobu Ando (1975-), Ken Shimura (1950-2020), Tomoko Naraoka (1929-) e Yoshiko Tanakae (1956-2011).
Poppoya é uma onomatopéia do barulho da locomotiva, que também nos leva à Itália, visto que o personagem que retrata o menino adotivo vai aprender culinária italiana e volta ao Japão querendo retomar o restaurante da senhora que o criou, atribuindo-lhe o nome de Locomotiva. A narrativa fílmica traz abraços, e expressões de afeto atípicas do cenário cotidiano japonês, além de apontar o dedo à ferida cultural consequente da filosofia do “esforço desmedido ao trabalho” em contrapartida aos elos familiares, e pessoais.
Os laços que nos trazem ao filme aproximam-se dos que estão na urdidura histórica da união Brasil-Japão, mas que ainda é muito desconhecida, pouco comentada ou discutida – talvez, um tabu… Vale lembrar também que, além de ser o segundo país com mais japoneses, o Brasil é terra de milhares de imigrantes italianos que a certa altura começaram a se unir em laços familiares com os japoneses o que expôs as chagas dos embates culturais, na maioria das vezes, silenciados. O filme de Furuhata, extrema e extraordinariamente lírico, traduz a nuvem da convergência de afetos revelados, por vezes, em descontinuidade e, também, das mudanças que se fazem necessárias para a continuidade das dinâmicas de eficiência, produto da filosofia do “esforço desmedido ao trabalho”, um dos eixos dos embates culturais que aqui levantamos…
Por mais resenhas críticas e trabalhos acadêmicos que façamos, pouco iremos corresponder à qualidade poética da narrativa de Jirō Asada e da cinematografia de Yasuo Furuhata. Por isso, desenhar umas linhas em imagens e sons foi a nossa melhor resposta…