O filme Sabor da Vida, no original japonês あん – e em inglês Sweet Bean –, foi dirigido e escrito por Naomi Kawase. Estreou em 2015 trazendo dois ícones da cinematografia contemporânea japonesa, nomeadamente, Kiki Kirin, que interpreta a senhora Tokue e Masatoshi Nagase, que faz o papel de Sentarō, gerente de um estabelecimento que produz e vende dorayaki. A terceira protagonista-antagonista da narrativa é a personagem Wakana, interpretada por Kyara Uchida, uma garota prestes a largar os estudos.
Estamos diante de uma Poesia lírica que, ainda assim, incorpora imagens japonesas típicas, clichês, tais como as cerejeiras (sakura), os bolinhos de feijão (dorayaki) o silêncio e o silenciamento de temas considerados tabus, a beleza da dor e da solidão, a velocidade lenta da câmera em contraste ao ritmo acelerado dos espectadores, as paisagens claro-escuro a ressignificar o ambiente interior e o exterior, a cor vermelha como ícone nacional em oposição ao colorido, ao barulho e à felicidade hollywoodeanas, dentre outros.
As vidas destes três personagens se cruzam numa narrativa temperada pelo amor que faz curar o desamor supostamente prévio à narrativa que se desvela aos espectadores. O homem de meia idade Sentarō trabalha pesado no estabelecimento de bolinhos de feijão e recebe a proposta da ajuda da senhora Tokue. No entanto, hesita em aceitá-la. A oferta se torna irrecusável e é quando a colher de madeira que move o caldeirão do feijão a se tornar pasta acaba movimentando também os corações de ambos.
Esses dois personagens se cruzam com a jovem Wakana, que ouve da mãe que “os estudos não pagam as contas”. O encontro dos três se dá em meio aos seus dramas pessoais, “desvios” ou incapacidades de vislumbrar novos horizontes. E é aí que está a chave de tudo: este encontro propicia-lhes trocas que os impulsionam a vivências únicas, a partir de saberes e sabores, conduzindo-os a novos possíveis horizontes.
Para além do debate sobre a cultura do preconceito etário, relativo à lepra e à condição social, o filme em seu profundo lirismo sinaliza reflexões sobre a existência que poderiam se configurar como um verdadeiro tratado sociológico. Afinal, a senhora Tokue parte para o mundo espiritual, mas deixa uma gravação (analógica!) para os dois outros protagonistas em que conta a sua estória e afirma ao seu “chefe”, o gerente da loja de bolinhos:
“- Viemos a este mundo para ver e ouvir. Por isso, não precisamos ser nada, não precisamos ser ninguém.”
Essa constatação de Tokue constitui uma cartografia do eu, e é a base filosófica de toda arte: escrevemos para fazer ver, como teria dito o escritor Joseph Comrad certa vez ao ser indagado sobre o porquê de sua escrita (ele responde: to make you see). Contamos para nos fazer ouvir. É a lógica das narrações. Basta-nos ver e ouvir, mas não um simples ver e ouvir. Um ver que é olhar que se prolonga em saber. E um ouvir que é escutar que se desdobra em entender. Ou seja, podemos não conseguir mudar o mundo, mas podemos conhecê-lo para o entender. Eis uma tarefa cheia de significado neste mundo.
Uma parte das muitas imagens líricas ao longo da narrativa é a da lua, que se conjuga com o indivíduo que existe ao ouvir. E ao ver. Também, existe ao contar. Numa alusão ao famoso poema da escritora norte-americana Emily Dickinson:
Eu sou ninguém! Quem é você?
Você é ninguém também?
Então, somos dois.
(no original, I’m Nobody! Who are you? /Are you – Nobody – too? /Then there’s a pair of us!)
O paladar que transforma as vidas dos personagens a partir da pasta de feijão de Tokue está para além de todos os sabores, mas não além dos saberes… Somos alguém, sendo ninguém… E no caso de Tokue, Sentarō e Wakana, eles poderiam reescrever o terceiro verso do famoso poema de Dickinson:
Eu sou ninguém! Você é ninguém também? Então, somos três!