CARPA_KUROIAME_IMAMURA_1989

Neste estranho ano de 2020 completam-se 75 anos da catástrofe que assolou terras, populações e a memória japonesa e mundial. Os bombardeios nucleares executados pelos Estados Unidos contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki em 06 e em 09 de agosto de 1945, respectivamente, mataram instantaneamente mais de 200 mil pessoas, em sua maioria civis. E, para além da destruição imediata, os efeitos dos ataques ressoaram anos por vir, trazendo constantes dúvidas sobre implicações das radiações deixadas pelas bombas e o temor de um futuro marcado, a partir dali, pela possibilidade de aniquilação da humanidade por ela própria.

Quase 45 anos após os ataques, o cineasta Shōhei Imamura (1926-2006) estreou Black rain – a coragem de uma raça (Kuroi Ame – 黒い雨, 1989), filme inspirado no livro Chuva negra (1965) de Masuji Ibuse (1898-1993). O longa-metragem lança mão de uma combinação de gêneros estéticos no árduo esforço de representar a catástrofe e suas consequências. Assim como o livro de Ibuse, o filme de Imamura centra sua narrativa na memória de seus personagens e sobre os efeitos da radiação no Japão após a bomba atirada em Hiroshima. 

Black rain – a coragem de uma raça parte de um relato da jovem Yasuko sobre o dia em que ela e sua família se mudavam de Hiroshima. É assistindo àquela calorenta manhã de 06 de agosto, que um clarão embranquece a tela e nos remete à trovejante luminosidade que ofuscou a visão dos que estavam próximos ao epicentro do ataque. Já do outro lado do rio que margeia a cidade, Yasuko avista uma nuvem escura de fumaça que enturva todo o horizonte. Ao navegar neste rio, retornando para reencontrar seu tio que estava em Hiroshima, uma chuva negra, altamente radioativa, formada pelos detritos da cidade e cinzas do que fora carbonizado, cai dos céus sobre a jovem.

Yasuko é acometida pela chuva negra. Cena de Black Rain – a coragem de uma raça (Kuroi Ame – 黒い雨, 1989) de S. Imamura

O que acompanhamos ao longo do filme são as consequências desse horror que, por anos a fio, acometem a vida de Yasuko. Imamura trabalha por toda a obra com a percepção dos sentidos humanos para desenvolver a trama. O clarão que primeiro ofusca a visão é seguido pela escuridão da luz solar que, encoberta, desaparece para dar lugar à chuva negra que toca e fere a pele. A surdez momentânea daqueles que foram expostos ao estrondoso barulho da bomba é sonoramente resgatada anos depois através de sons que reativam o trauma e a memória de dor e da guerra. 

Uma mãe que tenta nutrir seu bebê momentos após a explosão não aceita a morte e continua amamentando a criança carbonizada. A visão de uma grande, iluminada e brilhante carpa que salta alto de um rio ou ainda, a promessa de um arco-íris que embelezaria o horizonte trazendo esperança, surge em tons de branco e preto. A chuva negra em Imamura é metáfora, alegoria, mas é também muito concreta.

Para aludir ao preconceito com os hibakusha (被爆者) – os atingidos e afetados pela explosão atômica – o cineasta ressalta as consequências veladas que abalaram fortemente tradições japonesas. Yasuko, que vive agora em uma pacata vila de interior com seus carinhosos e preocupados tios, em breve completará 25 anos. É uma mulher solteira no que se considerava uma idade avançada; no entanto não consegue efetivar o matrimônio, tornando-se uma afronta para a sociedade. Seja pelas diversas doenças que ainda poderiam surgir, pelo medo do contágio, pela possibilidade da infertilidade ou até mesmo pela ocasional morte precoce, a jovem é descartada por vários pretendentes mesmo após conseguir um atestado médico assegurando que ela não estava presente em Hiroshima no exato momento da detonação da bomba. Mas Yasuko esteve próxima, e esteve sob a chuva negra que caiu em seu corpo marcando para sempre a sua vida.

Com extrema dureza e assertividade, o filme evidencia as perturbações que persistem no imaginário e que são particulares da memória de cada personagem. A avó de Yasuko enlouquece com a perda de suas terras, base de sua ancestralidade; a tia recorre à uma vidente para tentar dar conta da culpa de um passado que de fato nunca teve lugar; Yuchi, amigo de Yasuko, segue sua vida esculpindo enfurecidos Jizō (地蔵) – divindade budista guardiã das crianças e misericordiosa com os que sofrem em vida e morte – na tentativa de expurgar o pavor da guerra de sua mente. Mas Yuchi não é capaz de eliminar todo o trauma: o barulho dos motores de ônibus que eventualmente cruzam a vila lembra os sons ensurdecedores da guerra e, em surtos, ele sempre corre em direção aos veículos para contra-atacá-los, impedindo que o inimigo vença. O tio, único presente em Hiroshima à hora da explosão, mesmo com sintomas da radiação, é quem fica para cuidar dos doentes e dos mortos que proliferam em filas funerárias. E é justo ele que, mesmo não sendo monge, tem a incumbência de cantar sutras por uma passagem digna para as almas dos que padecem.

Günther Anders (1902-1992), filósofo alemão, dedicou extensa parte de sua obra para pensar o tempo que chamou de “Era Atômica”. O autor alertava que, a partir da eclosão das armas nucleares que atacaram o Japão, a humanidade não mais poderia desinventar a bomba e, por isso, viveríamos em constante temor diante desse “tempo do fim”. Sendo este o tempo em que esperamos a culminação final enquanto ainda não chegamos no fim propriamente dito. Dure o quanto durar, estaríamos neste tempo cientes do fim, à sua espera mas ao mesmo tempo indo contra sua efetivação, adiando e suspendendo ao máximo o fim dos tempos, a extinção total.

Portanto, Anders propõe que se não podemos desinventar a bomba, nem evitar suas consequências, devemos ao menos estar atentos ao poder do imaginário para lidar com a realidade. Tarefa que, para ele, seria quase impossível após a catástrofe, porém necessária. O empenho da arte que força o pensamento pode ser o de dificultar que o “tempo do fim” se converta em fim dos tempos, como inspira o filósofo. Por mais desolador que possa ser rememorar eventos traumáticos, a arte que procura elaborar sobre seu tempo contribui para a construção de uma memória coletiva. Em Black rain – a coragem de uma raça a orientação ao reconhecimento da ancestralidade auxilia-nos na compreensão do presente para lidarmos melhor com o futuro.

Rememorar agosto de 1945 revela-se bastante pertinente no tempo de hoje, quando muito se fala sobre o Antropoceno – Era na qual estaríamos vivendo e em que o homem teria se tornado capaz de moldar o planeta de acordo com seus anseios e desejos desbravadores e extrativistas, trazendo não apenas a prosperidade em inovações tecnológicas mas, simultaneamente, em sua onipotência perante aos outros seres, destruindo o planeta e deixando rastros devastadores por onde passa. Neste estranho ano marcado pelo temor diante das dúvidas sobre o que ainda pode o novo Coronavírus, a intensa espera por uma normalização, uma vez ultrapassada a pandemia, torna-se a cada dia mais angustiante e apreensiva. Potencializar o imaginário coletivo poderia, talvez, amenizar os dias em temor.

Mas nesse mesmo ano de 2020, um tribunal de Hiroshima finalmente reconheceu 84 japoneses atingidos pela chuva negra radioativa que intoxicou seus corpos e afetaram suas saúdes mentais como hibakusha. Muitos deles esconderam seus passados pelos últimos 75 anos, tentando se prevenir dos preconceitos que Black rain – a coragem de uma raça aborda tão frontalmente. Outros conseguiram força para lutar por reconhecimento. Agora, alguns terão seguridade médica para continuar lidando com as marcas da bomba.  Será que, mesmo que tarde, um arco-íris poderá ser visto no horizonte?

Shigematsu, tio de Yasuko, à espera de um arco-íris. Cena de Black Rain – a coragem de uma raça (Kuroi Ame – 黒い雨, 1989) de S. Imamura