A viagem de Chihiro (2001), de Hayao Miyazaki. © Studio Ghibli ・ NDDTM

Dentre os diretores de anime mais conhecidos no mundo, Hayao Miyazaki (1941 – ), co-fundador do Studio Ghibli traz em sua trajetória mais de uma dezena de longas-metragens animados, além também de muitos outros curtas. De Nausicaä do Vale do Vento (Kaze no Tani no Naushika, 1984) a Vidas ao Vento (Kaze Tachinu, 2013), os voos de Miyazaki aterrissam nos mais diversos cantos do globo, transformando as ideias de Japão no imaginário de crianças e adultos com seu modo tão particular de contar histórias.

As produções do diretor japonês abordam temáticas variadas, como a relação entre humanos e natureza, o ativismo anti-guerra, a passagem da infância à adolescência, o protagonismo e a independência feminina, dentre tantos outros. Em meio à diversidade de histórias e personagens, uma característica em comum das narrativas se destaca: cenas e construções narrativas nas quais “nada acontece”. 

Robin E. Brenner, estudiosa de cultura pop japonesa, no livro Understanding Manga and Anime (Compreendendo mangá e anime, 2007), argumenta que existe um certo aspecto nos filmes de Miyazaki ao qual se refere como pacing, algo como um “desacelerar” da história, um momento de contemplação sugerido.

A viagem de Chihiro (2001), de Hayao Miyazaki. Fonte: © Studio Ghibli ・ NDDTM

Foi pesquisando sobre os filmes de Miyazaki que me deparei com um vídeo do youtuber  Max Valarezo. Com o título Hayao Miyazaki: A Importância do Vazio (2016) Valarezo desenvolve uma relação entre os filmes do diretor japonês e a ideia de ma (間).

Foi tocado pelas propostas de Valarezo que iniciei uma pesquisa que me levou ao livro da professora Michiko Okano, Ma – entre espaço da arte e comunicação no Japão (Annablume, 2012), e muitas outras possibilidades se apresentaram a mim para abordar a estética japonesa.

Sobre essa temática, acabei desenvolvendo meu trabalho de conclusão de curso de graduação em Comunicação junto ao Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará. Na pesquisa, que intitulei Deslocamentos espaço-temporais: espacialidades ma () em “A viagem de Chihiro”, de Hayao Miyazaki,  propus alguns olhares acerca desses processos comunicativos sugeridos pelo cineasta.

A viagem de Chihiro (2001), de Hayao Miyazaki. © Studio Ghibli ・ NDDTM

Entendendo o ma como uma possibilidade anterior à existência concreta de algo e que é passível de manifestação de maneiras plurais, como, por exemplo, num silêncio, num vazio, numa pausa ou num espaço intervalar, a partir dos estudos da professora Michiko, busquei relacionar alguns aspectos da narrativa do que se tornou talvez um dos mais conhecidos filmes de animação japonesa.

A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001), narra a saga de uma garota no fim da infância que está mudando de cidade. Irritada por ter que deixar a vida antiga e amigos para trás, Chihiro mostra resistência em aceitar as transformações em sua vida 

Após passar por uma situação inusitada na qual seus pais são transformados em porcos, a protagonista se vê introduzida a um outro mundo, um território dominado por kami (神, divindades) e espíritos do folclore japonês. Desesperada com a situação, a garota aceita a única possibilidade que lhe é apresentada se quiser salvar os pais e fugir dali: pedir emprego na casa de banhos da bruxa Yubaba.

No decorrer de todo o filme, nos deparamos com o que identifiquei, no estudo, como possíveis diálogos com a ideia tradicional de ma. Vejamos: 

A passagem para o outro mundo

Num primeiro momento do filme, Chihiro é deslocada de sua vida comum, daí a expressão kamikakushi do título em japonês, que significa algo como “desaparecimento do mundo material pela ação das divindades”.

A viagem de Chihiro (2001), de Hayao Miyazaki. © Studio Ghibli ・ NDDTM

O diálogo com ma, nesse caso, se manifesta na suspensão da vida cotidiana da protagonista, o que potencializa os eventos que se seguem. A ida de Chihiro ao outro mundo faz com que ela enfrente desafios que a transformam.

Visualmente, essa passagem se mostra a partir de dois elementos que identifiquei como mais relevantes imageticamente no longa: o túnel e a ponte.

O túnel e a ponte

Por meio do túnel, Chihiro e seus pais fazem a travessia do mundo dos humanos para o terreno dos espíritos. O túnel se mostra, assim, como lugar intermediário entre esses dois universos de possibilidades distintas.

Segundo a professora Michiko no livro citado, qualitativamente, o elemento da ponte, na cultura japonesa, tem a função concreta de espaço intervalar, um entre-lugar que conecta territórios diferentes, como uma analogia à ideia de ma.

É na ponte para a casa de banhos da bruxa Yubaba que acontece um dos encontros mais importantes do filme, quando Chihiro e o personagem Sem Rosto (Kaonashi) se veem pela primeira vez.

A viagem de Chihiro (2001), de Hayao Miyazaki. © Studio Ghibli ・ NDDTM

O roubo do nome

Após os pedidos incansáveis de Chihiro, Yubaba contrata a garota para trabalhar no estabelecimento. Chihiro assina o contrato com os ideogramas de seu nome, 荻野 千尋 (Ogino Chihiro). Alguns, então, são roubados pela bruxa, restando apenas 千, que passa a ser lido com a leitura chinesa (Sen).

A prática de Yubaba se revela como uma tentativa de controle sobre a identidade da protagonista. Nossa heroína, no entanto, encontra outra identidade intermediária no espaço entre Chihiro e Sen, construindo uma nova personalidade amadurecida, possibilitada pelos aprendizados que adquire nesse espaço-tempo suspenso no qual o filme se estende.

A viagem de trem

Por fim, chegamos ao clímax da narrativa do longa, quando Chihiro, Sem Rosto e outros companheiros precisam fazer uma viagem de trem para salvar o personagem Haku, embarcando, então, numa locomotiva que leva a placa 中道 (chūdō ou nakamichi, literalmente: meio do caminho ou caminho do meio, outro possível diálogo com ma, e uma ideia importante para as crenças budistas).

O trajeto, que dura quase três minutos de exibição, é realizado pelos personagens num vagão onde os outros passageiros são apenas sombras, não possuem rosto nem nome, tampouco falam ou emitem qualquer tipo de som.

Toda a cena é montada sonoramente com uma trilha sutil. As notas de piano pensadas pelo compositor Joe Hisaishi (1950 – ) dialogam com as imagens nos imergindo em um estado quase de sonho, no qual não há diálogo entre nenhum dos presentes.

Chihiro, neste momento, não é mais a garota birrenta do início da jornada, mas uma outra possibilidade de sua existência, transformada pela potencialidade do espaço-tempo intervalar.

A viagem de Chihiro (2001), de Hayao Miyazaki. © Studio Ghibli ・ NDDTM

Esses são alguns dos elementos que articulei ao longo do trabalho desenvolvido. Como escrevi ao fim da análise realizada: “pensamos ser o silêncio aqui necessário, a pausa se mostrando essencial. Longe de uma suposta ausência de algo a ser comunicado — ou tornado comum — o vazio, o silêncio e a pausa que, neste caso, caracterizam o diálogo com ma, elevam a potencialidade interpretativa da cena, sugerindo ao(à) espectador(a) maneiras múltiplas de pensar a viagem de Chihiro.”