Cena do filme Boneca Inflável (Kuki Ningyō, 2009) de Hirokazu Kore-eda. Engine Film; Bandai Visual Company; TV Man Union; Eisei Gekijo; Asmik Ace Entertainment

Parece que a solidão é um sentimento muito frequente na vida das pessoas no Japão, quer seja pela dificuldade de fazer amigos, como diz a minha tia, pela educação e regras sociais que respeitam a privacidade do outro; quer seja pelo demasiado tempo de trabalho dos japoneses, sempre obrigados a mostrar a eficácia dos seus afazeres. Quando há uma radicalização de uma situação provocada ora pelo sentimento de inferioridade, vergonha, ora por atos de violência, humilhação, rejeição ou agressão (bullying) em relação ao sujeito, a pessoa chega a se isolar da sociedade, o que é chamado no Japão de hikikomori (引きこもり).

Existem dois filmes que ilustram a solidão dos japoneses na sociedade contemporânea em ângulos diferentes: Air Doll (Boneca inflável) (Kūki Ningyō, 2009) do diretor nipônico Hirokazu Koreeda (1962-) e Family Romance LLC (Romance de família Ltda, 2019) do alemão Werner Herzog (1942-) que estreou no Festival de Cannes ano passado. As obras mostram as supostas soluções encontradas principalmente pelos japoneses para amenizar a solidão que eles enfrentam no seu cotidiano. Mas seriam mesmo soluções? 

Cena do filme Air Doll (2009), Hirokazu Koreeda – Ficção, 116 min. 35mm

No filme Air Doll, um homem de meia idade, Hideo, possui uma boneca inflável, Nozomi, tratando-a como se fosse sua esposa. Um dia, ela ganha alma e começa a conhecer a vida humana, perambulando pela cidade na ausência do proprietário, até se empregar numa loja de vídeos de aluguel, sem que ele saiba desse fato. 

A boneca conhece o “sentimento” ao se apaixonar pelo rapaz dessa locadora de filmes, no entanto, no final, ela não consegue frutificar a sua relação. Quando Hideo descobre que Nozomi não é mais uma boneca, o proprietário pede que ela volte a sê-lo, mas ela se recusa.

No outro filme, Family Romance LLC, a narrativa é sobre uma agência que aluga pessoas com o objetivo de serem substitutos no papel que o cliente desejar. Pode ser contratado para fazer a função de um pai, uma mãe, um(a) filho(a), uma família inteira, um(a) companheiro(a), amigo(a), ou até para levar a culpa de uma falha cometida no trabalho, ou serem convidados de uma festa de casamento ou até mesmo o noivo. 

Cena do filme Family Romance LLC (2019), Werner Herzog – Ficção, 89 min. Digital

Yuichi faz o papel de pai para Mahiro, de doze anos. À medida que o relacionamento se desenvolve, os dois começam a criar laços afetivos, de uma maneira em que Mahiro começa a se tornar mais desenvolta e contar segredos e problemas para o suposto pai. A afetividade que começa a envolver os dois incomoda Yuichi, que pensa em terminar com o trabalho, simulando uma suposta morte do pai. Yuichi confessa no final do filme a indistinção entre realidade e trabalho na sua vida.

Herzog contratou para o papel principal do filme Yuichi Ishi, que na vida real é proprietário da empresa que se chama, justamente, Family Romance, e que tem mais de dois mil “atores” empregados. O valor para o aluguel custa no mínimo em torno de US$ 80 por 2 horas ou no caso de família, US$ 200 por 4 horas, sendo que os papéis mais difíceis – como assumir uma culpa, levar bronca – custam, por caso, US$ 1,000 (informação obtida no site). Após a conclusão do contrato, todos os documentos são destruídos para manter a privacidade do cliente.

Além da solidão, pode-se notar a fragilidade do homem no primeiro caso, no sentido de sentir-se mais confortável e ser menos trabalhoso ter uma boneca que obedece a todos os seus comandos do que enfrentar uma mulher real que possui uma opinião própria. 

Os casos conhecidos de homens que casam com personagens virtuais como o holograma de Hatsune Miku não são tão diferentes. As bonecas ou as personagens do computador trazem utopia para os homens, construindo um mundo de ilusão e fantasia que não traz aborrecimentos. 

Pode-se fazer uma associação também com os homens denominados herbívoros 草食 男子 (sōshoku danshi) que rejeitam o relacionamento mais íntimo, inclusive sexual, com outras pessoas. Hikikomori são pessoas que se trancam dentro de casa por opção própria, retiram-se da sociedade e evitam contato com outras pessoas. Numa pesquisa de 2018 (Jornal Asahi de 29/03/2019) foram detectados 613 mil adultos e 541 mil jovens no Japão – mais de um milhão de japoneses – hikikomori, o que corresponde a quase 1% da população japonesa. 

Será que a love doll ou a família momentânea e “de mentirinha” realmente substituem a falta ou a ausência destes? A pesquisadora Agnès Girard indica que love doll é uma prótese que fica no lugar de uma parte do corpo que perdeu, mas que em vez de amenizar ou mascarar uma deficiência, ao contrário, a acentua.

E a família de aluguel? Seria um “healing”(ヒーリング, palavra esta muito utilizada no Japão, em tipos de músicas, terapias, propagandas, como um tratamento para se curar de alguma “doença” física e psicológica? Interessante saber que o nome da empresa de Ishii, Family Romance, vem de um conceito freudiano de uma fantasia infantil, associando o aluguel de família a um tipo de “tratamento psicológico”.

Nozomi em cena de Air Doll (2009)

O que fazem esses japoneses evitarem de ter relacionamentos reais – com pessoas de carne e osso – apesar da palavra ningen (人間) em japonês, que significa pessoa, ser composto de ideogramas que correspondem a indivíduo na sua relação com os outros? Os exemplos mais extremos da sociedade contemporânea apareceriam no Japão, a ponto de um renomado diretor alemão fazer um filme sobre o caso? 

Existem, provavelmente, vários motivos: a dificuldade de relacionamento na coletividade japonesa, seja na escola ou no ambiente de trabalho; bullying existente num sistema social que cobra uma homogeneidade de comportamento; relacionamento familiar inadequado; sentimento de inferioridade; medo de ser ferido por outros, etc. Talvez esteja relacionado com o fato dos japoneses trabalharem demasiadamente, herança do período pós-guerra em que era necessário esforço descomunal para a reconstrução do país. Outro fator é a obsessiva perfeição ou comprometimento exigido para com o trabalho, como se não fosse permitido falhar nesse sistema. Esse trabalho excessivo leva os japoneses a não tirar férias, a não saber se divertir, a não ter tempo com os familiares. 

Se a tropicalidade brasileira traz toda uma corporalidade tátil, os japoneses não estão acostumados a terem conexões desse tipo: apenas um leve abaixar a cabeça para cumprimentar os outros, enquanto os abraços, por exemplo, não são realizados, de modo que existem pessoas com faixas na rua escritos WE GIVE HUGS (Nós damos abraços). Os brasileiros poderiam muito bem ensiná-los a aproveitar melhor a vida e o tempo com os amigos e a dois… Que continuemos com os fortes abraços e os beijinhos nesse lado do planeta.

Escrito por

Michiko Okano

Mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professora adjunta de História da Arte da Ásia na graduação e pós-graduação da UNIFESP, professora colaboradora na pós-graduação do Centro de Estudos Japoneses da USP. É coordenadora do Grupo de Estudos Arte Ásia. Autora do livro Ma: entre-espaço da arte e comunicação no Japão (Annablume, 2011) e Manabu Mabe (Folha de S.Paulo, 2013).
Curadora da exposição de 21 artistas nipo-brasileiros, Olhar InComum: Japão Revisitado no MON, Curitiba, em 2016 e da exposição de artistas nipo-latinos, Transpacific Borderlands: The Art of Japanese Diaspora in Lima, Los Angeles, Mexico City and São Paulo no Japanese American National Museum, Los Angeles, em 2017/18.