Só notei o aroma na segunda vinda ao Japão. Aroma de inverno.
Meus olhos tragaram a luz de suas ruas, seus letreiros e o semblante das pessoas. Retratos das caminhadas nas madrugadas chuvosas. O aroma era um amigo esquecido que me esperava mesmo sem dele me recordar. No meu ingênuo apego às imagens, havia esquecido que a saudade extrapola as raízes da mente, que imagina como uma máquina fotográfica ou como um decalque. A saudade, apesar de também se portar enquanto imagem, está longe de ser dela exclusiva. Diante do corredor entre o avião e o Aeroporto de Haneda, não custei muito a reaprender pelo olfato, em primazia, que as memórias também se abrigam nos demais sentidos. Mesmo as palavras, que atuam como nossa madrasta, não puderam suprir o significado do aroma japonês pelo estratagema da semântica. Eu poderia fazer uma comparação absurda entre o cheiro seco da serragem e um doce de ameixa, mas com palavras não posso protocolar minha defesa. Só consigo dizer: me recordo do aroma.
Talvez porque o corpo seja o bentō que mantem aquecido o alimento da saudade, meus pés se lembraram das ruas, das dobras estreitas de becos, da neve e do asfalto. Meus ouvidos convidaram o som do corvo no galho seco, das carpas borbulhando na beirada do lago e do toque dos trens como se fossem velhos amigos. As mãos tocaram aquelas moedas, cartões, paredes, árvores e rostos conhecidos. A boca provou do sabor das antigas paixões do paladar. Enquanto ainda sou muito imaturo para transpassar a carne em palavra, essa é a maneira como consigo escrever. Acredito que para os que se firmam com entusiasmo em qualquer estudo, tal encontro entre o que não-pode-ser-dito e o que não-precisa-ser-dito é ambicionado. Nos gratificamos com uma vida inteira de prazer por lutar pela plena derrota de se tentar conseguir significar algo. O ofício da pesquisa é, antes de tudo, uma batalha derrotada para que justifiquemos novas batalhas.
A empreitada de um mês de intercâmbio de pesquisa no Japão não teria sido possível sem o aval da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Universidade de Kanagawa (KU) através do convênio com o Centro de Pesquisa de Documentos Não-escritos (Himoji Shiryō Kenkyū Center), o qual visitei sob a calorosa supervisão da Srª. Akane Narita. Agradeço igualmente a Profª. Drª Lica Hashimoto, ao Prof. Dr. Kikuchi Wataru e a Profª. Drª. Michiko Okano pelo auxílio, cada um a sua maneira estendeu-me a mão, antes da viagem.
Meu primeiro vislumbre da Universidade de Kanagawa se deu na biblioteca do campus original de Yokohama seguido da visita ao mais recente e suntuoso campus de Minato-mirai. A fundação da universidade se deu em 1928 sob a égide de Yoshimori Yoneda, testemunha da crise ética da sociedade japonesa em meio a tentativa de se operar um sistema dito democrático. A instituição firmou seus tijolos corajosamente no tempo em que as Leis de Preservação de Paz sufocavam os grupos de pensadores “subversivos” vinculados a grupos políticos progressistas. A criação do Centro de Pesquisa de Documentos Não-escritos data de 2008 e hoje conta com uma coleção de variedades como, por exemplo, kamishibai, materiais gráficos da revolução cultural chinesa durante o período maoista, ukiyo-e da vida privada e do folclore local, fotografias de Kawai Yasuhei e quadrinhos do pré-guerra e do pós-guerra. Documentos sem prescrição. Lotados de signos de cor e forma independentes da significação ideogramática. Ou quem sabe, fazendo da própria cor e forma seu idioma. Aquele centro de pesquisa me inquiriu se seria possível pensar a expressividade fora do encarceramento das letras, da etimologia, da sintaxe e do idioma.
Logo, veio-me à mente a frase de André Breton, líder dos surrealistas franceses, tão exaustivamente reformulada pelo surrealista japonês Shūzō Takiguchi: “O olho existe em estado primitivo”. Sim, os olhos não são o suficiente no mundo dos sentidos. O onírico precisa ser expresso. No que tange a boca, as palavras formam a população de uma ilha cercada pelo oceano do inominável. Nesse ínterim, o Prof. Dr. Hirofumi Mizukawa foi meu orientador durante essa curta e apressada busca pelas afinações entre a poética surrealista no Japão e as linguagens artísticas de teatro e dança de contracultura através das figuras de Shūji Terayama e Tatsumi Hijikata, respectivamente, o alquimista da cena e o dançarino das trevas. Também recebi valiosos direcionamentos do Prof. Dr. Daisuke Akiyoshi, especialista em teatro angura. Em resumo, considerei como ponto de partida as primeiras interações de Terayama e o grupo de poetas liderados por Katsue Kitasono assim como a proximidade entre Hijikata e a literatura maldita dos franceses modernos, especialmente as traduzidas por Takiguchi e Tatsuhiko Shibusawa.
Na biblioteca do campus de Yokohama folheei horas a fio a coleção de poemas e ensaios de Shūzō Takiguchi e Junzaburō Nishiwaki. No Museu de Arte Moderna de Tóquio ofereci meu corpo às obras transgressoras de Akasegawa Genpei, Tetsumi Kudo, Natsuyuki Nakanishi, Michio Horikawa, Koga Harue, Shigeo Ishii e Gentarō Komaki. Na cafeteria Megutama, cerquei-me dos fotolivros de Eikō Hosoe, Shōmei Tomatsu, Ikko Narahara e Daido Moriyama. No Museu das Coisas Esquecidas no Tempo (Toki no Wasuremono) fui atendido pelo Sr. Lishi Chen, que me mostrou as obras originais de decalcomania de Shūzō Takiguchi. No Memorial Tarō Okamoto, testemunhei um ateliê que rememora a presença do artista e o peso de seu tempo.
Participei de uma aula de eurritmia com o dançarino de butō Akira Kasai, que rendeu parágrafos tão extensos de diário quanto minha conversa com Miura Issō, o primeiro dançarino de butō a performar em solo latino-americano em 1978 no Peru por intermédio de Eugenio Barba. Durante uma semana, O Centro de Artes da Universidade de Keio (Keio Art Center) foi meu reduto caloroso de reflexões, entrevistas e algumas fofocas junto dos pesquisadores Kae Ishimoto, Takashi Morishita, Yukihiko Yoshida e Watanabe Kubo. No centro de informações sobre a dança butō e o Surrealismo japonês, considerado o mais completo do mundo, pude acessar pôsteres e programas de espetáculos, registros audiovisuais de performances, indumentária e objetos cênicos, livros e dissertações de todas as partes do mundo, cartas originais entre poetas. Da proximidade estabelecida, surgiu a oportunidade, mediada pelo diplomata Romero Maia, de partilhar a fala com o Sr. Morishita em um evento sobre a correlação entre o butō e as danças brasileiras na Embaixada do Brasil em Tóquio.
Por conseguinte, a partir do meu cacoete intuitivo de visitar locais importantes relacionados aos artistas que investigo na ânsia de capturar alguma aura intocada pelo tempo, senti os arredores onde um dia jaziam erguidos o teatro Tenjō Sajiki de Shūji Terayama, o estúdio Amianto de Tatsumi Hijikata, as ruelas e templos do fotolivro Doninha das Foices (Kamaitachi) de Eikō Hosoe e as antigas residências de alguns dos nomes mais respeitados da contracultura.
Olhando para o mar de Kamakura do alto de uma montanha, protegido por um templo deificado por Inari, o Pacífico parece mais com um feixe de luz azul do que um grande oceano gélido e cheio de mistérios. Assim dita o olho selvagem, porta de entrada para as fantasias oníricas, narrando ondas em forma de monstros. As presas do mar que não consigo ver atuam como um pacato retiro após tanta areia de memória. Das palavras, não conseguiria retirar um terço ou dois quintos dessa experiência densa em águas rasas. Velozes demais para me engolirem em grandes ondas.
Uma última saudação. O coração bateu com nervosismo. Uma vontade de sair correndo para longe e ao mesmo tempo voltar correndo para perto. Dois sorrisos lembram do que foi intervalado por quatro anos. As mestras de dança tradicional Kan’ōgi Fujima e Tsubasa Shō não me deixaram partir sem que eu antes dançasse uma última vez.
Voltei com o aroma do inverno. Na próxima vez, do que os sentidos me farão recordar?
Nesse relato de Daniel Aleixo, a viagem ao local de existência de seus temas de estudos tornam para nós leitores, a presentificação porosa da cultura japonesa, numa sincronização afetiva do nosso ritmo de respiração com o movimento da ilha no mar, da tradição na contemporaneidade de nossos dias, da habitação da dança japonesa por um brasileiro, que se torna então, mais japonês.