Dentre os diversos elementos que definem a estilística de Yasujirō Ozu, a atuação é particularmente curiosa, sugerindo uma certa comunicação análoga com cineastas e teóricos do cinema ocidental e soviético: Robert Bresson, Serguei Eisenstein, Lev Kuleshov e até mesmo com Michael Chekhov, que viveu como um ator híbrido, do teatro ao cinema.
Dentre as grandes atrizes e atores que trabalharam com Yasujirō Ozu, podemos citar Setsuko Hara, Chishū Ryū, Haruko Sugimura, Yumeji Tsukioka, Yōko Katsuragi, Shinichi Himori, Jun Yokoyama, Tatsuo Sakamoto, Takeshi Sakamoto, Tomio Aoki, Hideo Sugawara, entre outros. Nos anos 1950, Setsuko Hara foi quem mais se destacou em uma atuação intrinsecamente próxima ao ideal do cotidiano da mulher japonesa, sendo cotada como símbolo do cinema nacional, considerada a “eterna virgem” do Japão.
Ozu exigia uma atuação delimitada e minuciosa, sem nenhuma abertura para espontaneidade ou improvisação. O produto disso tem pouca relação com a pantomima de atores físicos como Buster Keaton e Charles Chaplin, mas flertam com algo proposto pelo diretor francês Bresson em Notas sobre o cinematógrafo (1979): “Nada de atores (nada de direção de atores). Nada de papéis (nada de estudo de papéis). Nada de realização. Antes, o emprego de modelos, encontrados na vida. Ser (modelos) em vez de parecer (atores)” (1).
Esse modelo é caracterizado pelo rigor, economia do gesto e expressão corporal plástica para criar uma figura pictórica em cena, como visto em filmes do próprio Bresson, Um condenado à morte escapou (1956) e O dinheiro (1983), e em filmes de Ozu como O sabor do chá verde sobre o arroz (1952) e A rotina tem seu encanto (1963).
O modelo usa os objetos de cena para dar valor à presença deles em cada quadro, fora os artifícios cenográficos que são usados para certificar a impressão de realidade do filme. Esse tipo de atuação “recebida” é bastante típico do teatro. O combate de Bresson ao vício teatral na linguagem cinematográfica não remetia a uma busca pela representação da realidade como ela é, mas a um outro registro de artificialidade cênica: “Nada mais falso em um filme do que aquele tom natural do teatro que imita a vida e traça os sentimentos estudados” (1).
Uma característica marcante dos dramas de rotina (shomin geki) de Ozu é o jeito íntimo com que o personagem lida com o ambiente, que, muitas vezes, representa o seu lar – o cineasta costuma focar seu trabalho inicial na concepção e montagem da cenografia antes de inserir a partitura de ações essenciais das personagens. Cada modelo (ator/atriz) usado em um filme passa a representar um arquétipo do mundo real, no mais puro paralelo permissível ao sistema de arquétipos do ator Michael Chekhov em Para o ator (2010): “a verdadeira tarefa do artista criativo não é só copiar a aparência exterior da vida, mas interpretar a vida em todas as suas facetas e em toda a sua profundidade, mostrar o que está por trás dos fenômenos da vida, deixar que o espectador olhe mais além das superfícies e dos significados da vida” (2).
O arquétipo, segundo a psicologia junguiana, é um conjunto de fenômenos adquiridos e universais ao imaginário humano. Os arquétipos estão contidos no denominado inconsciente coletivo e se manifestam na consciência dos indivíduos e dos povos por meio dos sonhos, da imaginação e dos símbolos. O teatrólogo Patrice Pavis em seu Dicionário do teatro (2005), define a ideia de arquétipo nas artes cênicas como um estudo tipológico das personagens dramáticas que revela que certas figuras procedem de uma visão intuitiva e mítica do homem, remetendo a complexos ou a comportamentos universais (3). Dentro desta ordem de ideias, poder-se-ia falar de Fausto, Fedra ou Édipo como personagens arquetípicos.
Nesse sentido, o interesse de tais personagens seria ultrapassar amplamente o estreito âmbito de suas situações particulares segundo os diferentes dramaturgos para elevar-se a um modelo arcaico universal. O arquétipo age como recurso de preenchimento das intenções e sentido da personagem a partir de conteúdos já digeridos ao longo da história humana em seus núcleos de imaginário, cosmovisão e mitologia.Logicamente, o modelo técnico do arquétipo de Michael Chekhov pode ser pensado como um acervo de figuras que remetem ao inconsciente humano, predominantemente ocidental, para aplicar no processo de montagem da personagem em cena, tanto no teatro quanto no cinema. Chekhov, após sua saída da Rússia e vinda para os Estados Unidos, não só fundou escolas para atores para dar continuidade ao seu trabalho, mas também atuou em diversos filmes norte-americanos, entre os mais conhecidos, O espectro da rosa (1946) e Quando fala o coração (1945). Com isso, ele demonstra que sua técnica consegue colaborar com propostas cênicas de palco e audiovisuais.
Contudo, tal trajeto não significa que devemos desconsiderar os aspectos que atritam num sistema chekhoviano com um cineasta japonês. Não se trata de emular o sistema de Chekhov em filmes japoneses para propor uma falsa igualdade de ideias, mas de capturar sua lógica e criar equivalências com outra determinada processualidade. Não nos esqueçamos do quão híbrida é a experiência do cinema, que apesar de sua origem historicista, ganhou diversas genealogias em diversas partes do globo ao longo dos séculos, desmembrando as barreiras de um universalismo uniforme, permitindo uma universalidade no quesito de diversidade.
Além disso, não nos esqueçamos de figuras como Antonin Artaud, que encontrou o seu oriente no México, ou de Tatsumi Hijikata, que encontrou sua dança nos livros de Jean Genet, ou em André Breton, que encontrou parte de sua arte nas máscaras da Nova Guiné. Sendo assim, nada nos impede de imaginar diálogos entre Chekhov, Ozu e Bresson. O foco aqui é olhar pelo viés da fabulação como entendido por Christine Greiner em Fabulações do corpo japonês (2017), isto é, a encruzilhada entre a factualidade e o roteiro, entre o literal e o sentido dado (4).
Peguemos a Trilogia Setsuko (1949-1953): em todos os filmes temos o personagem do pai, a personagem da filha, a personagem da mãe, a personagem do tio, enteados e avós, entre outros. Os personagens possuem traços comportamentais aderentes aos traços de uma figura familiar, como a figura paterna e a figura materna, que por meio do gesto cotidiano dão a impressão de realidade ao público. Se sofisticarmos mais ainda o estudo de um arquétipo específico, como o do pai, podemos abrir as linhas comportamentais desse arquétipo presente na mesma figura em todos os três filmes como: laconismo, autoridade e serenidade. Esse comportamento é encontrado tanto nas atitudes isoladas do personagem (gesto) – pai contemplando sua filha com vestes de noiva ou cortando a maçã na cena final de Pai e Filha (1949) –, quanto na relação que os outros personagens estabelecem com o mesmo em cena (jogo) – a matriarca lidando com seus netos e filhos em Também fomos felizes (1951). Assim funciona também em Meninos de Tóquio (1932), pois independente da personalidade específica dos personagens protagonistas, todos eles possuem os traços em comum do arquétipo da criança: curiosidade, inocência, vigor.
A padronização das personagens em Ozu parece flertar com Chekhov e com a processualidade do modelo bressoniano, cujo estudo do gesto se dá através da repetição contínua e ininterrupta de uma ação até que ela desperte o vigor necessário para sua realização, assim como o desejo necessário do personagem de realizá-la. Da expressão para o sentimento. Entre o começo e o fim das transformações pelas quais passa o personagem em um enredo, existe um fio condutor de comportamento que não se perde.
Por fim, Yasujirō Ozu ainda nos é um exemplo de simplicidade, passividade e reflexão em meio a tantos acontecimentos avassaladores do século XX no Japão. Essa preservação e, simultaneamente, a não rejeição das mudanças torna esse diretor como um tangencial ao estilo contracultura. Por isso a peculiaridade que cruzou a mesma época, no entanto, enviesando-se por ruelas diferentes do cinema.
Referências
(1) BRESSON, R. Notas sobre el cinematógrafo. 1ª ed. Cidade do México: Biblioteca Era, 1979.
(2) CHEKHOV, M. Para o ator. 4ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
(3) PAVI, P. Dicionário do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.
(4) GREINER, C. Fabulações do corpo japonês. 1ª ed. São Paulo: n-1 edições, 2017.