Detalhe Túmulo Shigeru Mizuki - foto: Maria Ivette Job

Avançava a segunda metade da década de 1950, quando o artista de mangá Shigeru Mizuki (1922 – 2015), criador do personagem GeGeGe no Kitarō (ゲゲゲの鬼太郎), o primeiro yōkai super-herói a lutar para proteger a humanidade, adquiriu uma casa em Chofu. O Japão passava por uma grande recessão e Mizuki, que tentando ingressar no ofício do mangá batalhava contra a fome, fez um empréstimo no banco para comprar o imóvel, vizinho a um campo e a um templo budista.

Chofu é uma cidade da região metropolitana de Tokyo, acessível a quinze minutos de trem, a partir da estação de Shinjuku. Apesar da proximidade, os dois centros urbanos diferem em muitos aspectos. Em Chofu, arranha-céus, multidões de pessoas e passos apressados cederam lugar a ruas mais desertas, arborizadas, a edifícios de poucos andares e a templos, sendo que um deles, o Jindai-ji, o segundo mais antigo da capital japonesa, data de 733.

Jindai-ji, templo budista em Chofu. Imagem da autora, abril de 2018.

Foi nessa cidade atravessada pelo rio Tama que Mizuki passou a maior parte de sua vida, criou seu principal personagem de mangá e estabeleceu seu estúdio, o Mizuki Productions. Sua esposa, a Sra. Nunoe Mura (1932-) fala brevemente a respeito de ser uma cidadã de Chofu, no vídeo Discover Chōfu.

Em sua obra autobiográfica em quadrinhos, o artista de mangá conta sobre ter encomendado a construção do seu próprio túmulo no cemitério atrás do templo budista vizinho à sua casa, por volta de 1987. Nessa época, sua carreira já estava consolidada e, inclusive, GeGeGe no Kitarō passava por “uma nova onda de entusiasmo”, nas palavras de seu criador. A terceira adaptação do anime para TV colocou 115 episódios no ar, de 1985 a 1988. Mizuki fala também de seu fascínio por sepulturas e interesse pelo “mundo dos espíritos” desde a infância, passada na cidade de Sakaiminato.

Geograficamente distante dos maiores centros da ilha de Honshu, a área costeira banhada pelo Mar do Japão onde fica Sakaiminato abriga também a sua vizinha Matsue. Nela, o escritor greco-irlandês Lafcadio Hearn (1850 – 1904) viveu 15 meses e tornou-se cidadão japonês após o casamento com Koizumi Setsu (1868 – 1932), adotando o nome de Koizumi Yakumo. Hearn deixou mais de dez obras escritas sobre o Japão e, assim como Mizuki, o sobrenatural japonês o encantava. Em seu livro Glimpses of Unfamiliar Japan (Vislumbres de um Japão desconhecido) (1894), o autor mostra-se impressionado com a aparente alegria da fé popular, com o contentamento das pessoas e com a ausência de austeridade diante de sua religião: “afortunados aqueles que não temem os deuses que inventaram”.

Sem adentrar nas complexidades a que esse “vislumbre” de Lafcadio Hearn sobre a relação do Japão com sua religiosidade pode nos conduzir, vale notar a forma espirituosa, lúdica e ao mesmo tempo respeitosa com a qual Mizuki Shigeru aborda o elemento sobrenatural das tradições populares japonesas em suas narrativas. Um dos reflexos disso é a arquitetura de seu túmulo, em Chofu.

Mizuki Shigeru viveu pesquisando sobre as representações do sobrenatural, no seu país e em outras partes do mundo.

Abrigada em um pequeno cemitério em um canto reservado da cidade, sua sepultura salta à vista do visitante, com as esculturas de seus dois principais personagens yōkai postados sobre os pilares laterais, espécies de guardiões do além. À direita e sobre o nome de pena do artista, Mizuki Shigeru (水木 しげる), fica Nezumi Otoko (Homem Rato) yōkai de personalidade duvidosa. À esquerda, sobre seu nome de família – Mura Shigeru (武良 茂) -, vemos o yōkai super-herói GeGeGe no Kitarō. Três painéis, gravados em relevo, com esses seres do imaginário japonês desenhados ao longo da carreira do mangaka, ladeiam o túmulo . Na laje frontal, jaz uma latinha de oden em conserva, comemorativa dos dez anos do parque Yōkai Rakuen (妖怪楽園 – Paraíso dos Yōkai), em Sakaiminato, https://www.yokairakuen.jp/, como oferenda aos ali sepultados.

Túmulo de Mizuki Shigeru, no cemitério vizinho ao Kakusho-ji, templo em Chofu. 2.2. Um dos três painéis em baixo-relevo da sepultura de Mizuki Shigeru. 2.3. Oden em conserva. Lata comemorativa dos dez anos do parque Yōkai Rakuen, em Sakaiminato. Imagens da autora, abril de 2018.

Em Chofu, encontram-se também três outras referências às criações de Mizuki. Da estação central de trem, partem ônibus pintados com a turma de GeGeGe no Kitarō. Próximo dali, uma rua comercial, a Tenjin, é decorada em toda a sua extensão com bonecos dos personagens do mangaka. Em outra parte mais distante, no caminho de entrada para o Jindai-ji, uma casa divide-se entre chaya e loja com produtos da Mizuki Productions – entre eles, livros, brinquedos, roupas, tenugui e artigos de papelaria.

“Afortunados aqueles que não temem os deuses que inventaram” (Lafcadio Hearn).

Shigeru Mizuki passou a vida pesquisando sobre as representações do sobrenatural, no seu país e em outras partes do mundo, elaborando inúmeros desenhos sobre o tema. A obra desse homem que sofreu as fatalidades da Segunda Guerra Mundial, na qual lutou como soldado, ao mesmo tempo que testemunha as transformações históricas do Japão no século XX, logra ao promover a inserção, em grande estilo e com muito bom humor, de um elemento da cultura popular japonesa nas mídias contemporâneas. Na mais perfeita coerência com seu legado, o artista de mangá não deixou por menos. Imortalizou esse fato em pedra, também na sua morada final.