"TOKYO OLYMPICS, 1964" por Michael Francis McCarthy está licenciada sob CC BY 2.0

Enquanto as Olimpíadas de Tokyo 2021 não acontecem, um bom modo de entrar no clima do evento esportivo é assistir ao filme Tokyo Olympiad (Olimpíada de Tokyo) do diretor japonês  Kon Ichikawa (1915 – 2008). O documentário lançado em 1965 é uma das obras mais marcantes sobre o evento realizadas no século XX; no entanto permanece menos reconhecida que a controversa Olympia (1938) da cineasta alemã Leni Riefenstahl (1902 – 2003). Feito sob encomenda governamental e institucional, o filme trata das Olimpíadas de 1964 que aconteceram em Tokyo no clima de reconstrução do pós-guerra que assolava o país. 

Originalmente, o projeto seria dirigido por Akira Kurosawa (1910-1998), que tinha intenção de realizar também a cerimônia de abertura, mas o diretor logo se afastou ao perceber que não conseguiria ter o mesmo nível de controle criativo de suas produções. Em seu lugar, Kon Ichikawa, conhecido por sua versatilidade, assume o projeto. Por ser muito habilidoso em seu ofício, Ichikawa era frequentemente chamado por estúdios para “salvar” filmes perdidos ou abandonados. O crítico Tadao Sato (1930-), comenta que entre os produtores, Ichikawa era visto mais como enshutsu (diretor de cena do que kantoku (diretor/produtor/supervisor), que é a palavra mais comum para designar diretores de cinema no Japão.

Kon Ichikawa
Entre suas obras mais conhecidas, estão A harpa da Birmânia (1956) e Fogo na planície (1959).
(Foto “Ichikawa Kon 市川 崑” por japanesefilmarchive está licenciada sob CC BY 2.0)

Tão megalomaníaco quanto o evento, o filme foi realizado em meio a exigências do Comitê Olímpico para registrar o acontecimento de forma abrangente, e do governo local e nacional, que queriam afirmar com o filme que o país havia se recuperado desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Contando com inúmeras câmeras, cinegrafistas, técnicos de som, rolos de filme e lentes, o documentário é tecnicamente impecável e demonstra toda a habilidade de Ichikawa. No entanto, segundo o professor Markus Nornes da Universidade de Michigan, especialista em documentários japoneses, tudo isso não foi o suficiente para que as instituições que encomendaram o filme ficassem satisfeitas com o resultado. Enquanto o Comitê Olímpico não se contentou com o registro, instituições governamentais japonesas desejavam que o filme contivesse mais cenas das novas arenas, da nova Tokyo, da bandeira japonesa, dos atletas japoneses e da família Imperial japonesa.

As diferentes metragens em que o filme foi lançado reflete um pouco essas insatisfações. A versão encontrada na página do YouTube oficial de Olympiad possui 125 minutos, enquanto o filme comercializado em formatos digitais internacionalmente conta com 170 minutos. No Festival de Cannes de 1965, foi exibida uma versão com 156 minutos e após ser aclamado pela crítica internacional, o documentário foi um sucesso de público no Japão.

Versão mais curta do documentário disponível no canal oficial do YouTube das Olimpíadas

Em relação à linguagem cinematográfica, um pouco de tudo pode ser encontrado no filme: desde câmeras lentas, sobreposições, uso de fotografias, e imagens coloridas e em preto e branco. A utilização de comparações visuais é constante e pode ser vista já no início do filme, quando ocorre o corte da imagem do Sol nascente para a bola de demolição que destrói edifícios na cidade, sinalizando a renovação urbana resultante das Olimpíadas. 

Enquanto as competições são mostradas com temporalidades que destacam o esforço corporal e emocional dos atletas, a plateia e o público são pegos em momentos espontâneos que demonstram a excitação e a angústia de assistir aos jogos. A casualidade com que o evento toma conta do país também tem seus momentos. No percurso da tocha olímpica pelo Japão, vemos o modo que o evento mexe com os ânimos locais quando pessoas se espremem nas ruas para ver ao vivo o fogo. Já na longa sequência da maratona que fecha o filme, observamos durante muito tempo o trabalho das pessoas que distribuem esponjas e copos de bebidas para os corredores se refrescarem. 

Tokyo Olympiad (1965), Kon Ichikawa
Mulher esforça-se em meio a multidão para ver a tocha olímpica de perto. 
Imagem do filme Tokyo Olympiad, dirigido por Kon Ichikawa

Se o que vemos no documentário não satisfez os órgãos que encomendaram o filme, é possível dizer também que o que não vemos – e sabemos apenas ao pesquisar um pouco sobre a produção – ganha outro significado. O jovem Yoshinori Sakai (1945 – 2014) que acende a tocha olímpica, por exemplo, foi escolhido especificamente por ter nascido em Hiroshima no dia em que a bomba atômica caiu na cidade, na intenção de demonstrar o renascimento do país. 

Por outro lado, Tokyo ao final dos anos 1950 e início dos 1960 passava por uma política interna turbulenta decorrente da revisão do Tratado de Cooperação Mútua e Segurança entre os Estados Unidos e o Japão em 1960. Protestos estudantis com pautas diversas eram frequentes na cidade e foram registrados por cineastas como Motoharu Jonouchi (1935 – 1986) e Noriaki Tsuchimoto (1928 – 2008). 

Como é de se esperar, não há menções a movimentos sociais desse gênero no filme. No entanto, existe um esforço em registrar a diversidade de nacionalidades presentes no evento, decorrente também do recente processo de descolonização africana. Durante o filme, acompanhamos brevemente um atleta da República do Chade, país que havia adquirido sua independência da França apenas em 1960. Mesmo que sua presença nos jogos seja sempre solitária e um pouco melancólica, o tempo dedicado a ele como representante de seu país atesta sua nacionalidade como legítima. Como se sabe, o reconhecimento olímpico de nações é com certa frequência alvo de debates durante os eventos.

Tokyo Olympiad (1965), Kon Ichikawa
Atleta Ahmed Issa durante corrida no filme.
Imagem do filme Tokyo Olympiad, dirigido por Kon Ichikawa.

Por essas e muitas outras características, Tokyo Olympiad é um dos grandes encontros entre o cinema e as Olimpíadas. Mais recentemente, tornou-se comum que diretores reconhecidos dirijam as cerimônias de abertura do evento, como era desejado por Akira Kurosawa. Cineastas como Fernando Meirelles (1955 – ), Danny Boyle (1956 – ) e Zhang Yimou (1951 – ) foram os últimos a terem esse mérito. 

As Olimpíadas de 2020 (agora de 2021) terão a cineasta Naomi Kawase (1969 – ) como documentarista oficial. Já prevendo uma das controvérsias possíveis do futuro filme (ou filmes), será interessante ver como a pandemia de covid-19 será tratada – ou não – na história do evento. Mas enquanto a incerteza sobre as Olimpíadas permanece, o documentário de Ichikawa merece todo o reconhecimento como filme desse evento, que é sempre envolto de controvérsias e discussões políticas.