O diretor e roteirista de cinema Yasujirō Ozu (1903-1963) é tratado por Maria Roberta Novielli em seu livro História do cinema japonês (2007) como “o cineasta japonês mais clássico dentre todos”. Sua filmografia totaliza 54 filmes (1). Mais conhecido por seus filmes gendai geki (現代劇 – drama contemporâneo), buscou retratar o cotidiano do seio da família. O ritmo ralentado das suas histórias e os múltiplos enquadramentos de natureza morta, interlúdios vazios e troca de diálogos banais aos olhos desatentos, incitam uma atmosfera acolhedora e sem restrições. Dito isso, a genealogia fílmica de Ozu permeia tanto o cinema mudo quanto o cinema falado e, para delimitarmos o diegético e técnico do diretor, precisamos compreender seu trajeto nesses dois períodos.
Trajeto no cinema mudo
Sua fase no cinema mudo conta com 34 filmes, cronologicamente: Espada da penitência (1927), Sonhos de juventude (1928), Casal em mudanças (1928), Corpo belo (1928), Esposa perdida (1928), Abóbora (1928), Dias de juventude (1929), Amigos em luta (1929), Graduei-me, mas… (1929) Um rapaz sincero (1929), A montanha do tesouro (1929), A vida de um empregado de escritório (1929), Reprovei, mas… (1930), O espírito vingativo de Eros (1930), Sorte perdida (1930), Jovem menina (1930), A esposa dessa noite (1930), Introdução ao casamento (1930), Anda alegremente (1930), A senhora e o seu favorito (1931), Tristezas da beleza (1931), Coral de Tóquio (1931), A primavera vem das senhoras (1932), Meninos de Tóquio (1932), Onde estão agora os sonhos da juventude? (1932), Até o dia do nosso reencontro (1932), Mulher de Tóquio (1933), A delinquente (1933), Ilusão passageira (1933), Uma mãe deve ser amada (1934), Uma história de ervas flutuantes (1934), Uma donzela inocente (1935), Uma estalagem em Tóquio (1935), É bom estar na escola (1936).
Nesse período, guiado pela aclimatação das comédias burguesas do Ocidente, Ozu começa a moldar seu estilo a partir dos filmes Dias de juventude (1929) e A senhora e o seu favorito (1931). Notamos a presença de cenografia europeizante e na técnica de filmagem faux raccord (falsos encaixes), que consiste em uma sequência de planos sem continuidade aparente entre si criados para gerar um estranhamento por parte do espectador, que passa a criar sua própria leitura dos segmentos narrativos que compõem a obra. Em Meninos de Tóquio (1932), a narrativa possui similaridade com elementos de filmes de gângster, contada pelos olhos do mundo das crianças em paralelo ao mundo dos adultos em suas semelhanças brutais de fricção e relacionamento entre os pares. O filme retrata o comportamento juvenil mesclado com a dureza da vida real a caminho do desencanto. Com o passar do tempo, o diretor aproximou-se dos métodos soviéticos de produção, inspirado por Abram Room e Lev Kuleshov. Até aí, seu estilo iria se diferenciar muito dos populares Fritz Lang e D. W. Griffith. Para os ocidentais, como aponta Noel Burch em To the distant observer (1979), os filmes de Ozu, assim como tantos filmes japoneses, pareciam cada vez mais “hesitantes”, “sem objetivo”, “vagos”, cheios de “pontos mortos” (2). O abandono de certos códigos ocidentais, contudo, não era para Ozu um fim em si. Ele não para na recusa, numa “desconstrução” disforme. Ele organiza os intervalos e ambiguidades que resultam no seu requinte autoral.
A diluição da narrativa está associada a uma crescente estilização e geometrização. Burch afirma que Ozu legitimou o seu estilo em Mulher de Tóquio (1933) ao incrementar dois elementos fundamentais do seu cinema: o desinteresse pelo campo-contracampo e o uso do plano tatame, que como explica Claudia Ideguchi, “consiste em fixar a câmera de modo que o espectador esteja com a visão de uma pessoa ajoelhada no tatame” (3). Assim como o faux raccord, esse tipo de plano não trata pura e simplesmente de uma assinatura, de um traço estilístico individual, e sim de uma manifestação de dissidência diante da visão de mundo implícita no modo de representação ocidental – uma dissidência culturalmente determinada e complexa. Esse elemento também foi o responsável pela redução do uso da movimentação com câmera conhecida como traveling em seus filmes, assim como foi ônus de mais momentos de suspensão da diegese e de imobilidade (4). Além disso, torna-se ainda mais marcante perceber a imobilidade desse plano quando ele divide seu espaço com outros planos de movimento que discorrem a narrativa do filme.
O cineasta passou a dar mais atenção à figura pictórica das personagens e à câmera baixa, rente ao chão, imóvel, variando entre planos de natureza morta e atores centralizados. Tudo isso permitiu ao espectador uma atmosfera convidativa e que passa a permear seus futuros dramas familiares. Uma espécie de performance frontal. O efeito plástico disso foi a eliminação dos índices de profundidade de campo e o achatamento da imagem, uma clara redução da superfície bidimensional da tela (5). Por conseguinte, o que foi chamado de plano tatame tornou-se cada vez mais rico e variado, sendo usado não apenas como focalizador de personagens animadas – câmera na altura de uma pessoa em posição de seiza (正座 – modo de sentar-se muito utilizado no Japão onde, de joelhos, a pessoa senta-se sobre os calcanhares) sobre um tatame ou próxima a uma mesa –, mas também de objetos, criando verdadeiros enquadramentos de natureza morta.
Trajeto no cinema falado
Quanto à sua fase no cinema falado, é composta por 20 filmes, cronologicamente: Filho único (1936), Leão do espelho de Kikugoro (1936), Do que é que a senhora se esqueceu? (1937), Os irmãos da família Toda (1941), Era uma vez um pai (1942), Recordações de um cavalheiro aposentado (1947), Uma ave no vento (1948), Pai e filha (1949), As irmãs Munekata (1950), Também fomos felizes (1951), sabor do chá verde sobre o arroz (1952), Era uma vez em Tóquio (1953), Primavera precoce (1953), Crepúsculo de Tóquio (1957), A flor do equinócio (1958), Bom dia (1959), Ervas flutuantes (1959), Dia de outono (1960), Fim de verão (1961), A rotina tem seu encanto (1962).
Nesse período, suas obras sonoras permitiram ao diretor de desfechos narrativos e dialéticos serenamente trágicos, iniciada em Filho único (1936), que utiliza a sonoridade, que se expande no espaço e nos distrai, para contrastar com silêncio contido na verdade de cada personagem. Era uma vez um pai (1942) marca o fim definitivo dos movimentos de câmera em seus filmes, presença de qualidade pictórica, aproximação do público à diegese e a câmera baixa. Dirigiu a famosa trilogia Setsuko (1949-1953), chamada assim pelos estudiosos de cinema em homenagem à atriz Setsuko Hara e seu protagonismo em Pai e filha (1949), Também fomos felizes (1951) e Era uma vez em Tóquio (1953), sendo o último seu maior destaque dentre de crítica e visibilidade no mundo. O filme foi reconhecido e divulgado pela revista inglesa Sight and Sound entrando na lista dos melhores filmes de todos os tempos pela British Film Institute.
O campo-contracampo, apesar de ser um código predominante na filmagem ocidental que lentamente foi ganhando seu espaço no Japão, não era um artifício de construção que ganhou relevância em Ozu. Normalmente aparecia como uma sucessão de superfícies planas lado a lado, e não frente a frente, sem abertura para um espaço imaginário onde pudesse ser inserido o espectador. Em contrapartida, o diretor usufruía, de uma maneira bem particular, de faux raccords de olhar e da inclinação dos contracampos em 180° sem mudar o comprimento do plano (3). Ozu desafiou o princípio da inclusão do espectador na diegese enquanto revezamento invisível, transparente, na comunhão de duas personagens. Uma vez que a cada mudança de plano o espectador é obrigado, inconscientemente, a readaptar sua posição mental em relação aos protagonistas, a armadilha da participação não funciona mais tão bem. As personagens de Ozu falam mais consigo do que com seus parceiros.
O cineasta encerrou sua carreira sustentado por certa continuidade formal. As repetições de montagem, assim como o registro marcado de atuação, denotam o que é esperado pelo espectador que aprecia seus filmes – Jacques Aumont classifica essa recepção como cerne de fenômenos típicos do cinema: efeito corpus e efeito gênero em seu livro A estética do filme; o primeiro efeito é a linha formal e técnica que determina a identidade de um estilo fílmico e o segundo efeito é consequência do primeiro, um modelo fílmico já esperado e reconhecido pelo espectador mesmo antes deste ser lançado. Assim se criou a atmosfera cênica, a resultante geral das relações entre personagem-personagem, personagem-espaço e personagem-espectador no cinema de Ozu.
Referências
(1) NOVIELLI, M. R. História do cinema japonês. 1ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007.
(2) BURCH, N. To the distant observer. Berkeley: University of California Press, 1979.
(3) IDEGUCHI, Claudia Midori. Flores de cerejeira e ondas do mar: diálogos entre o cinema de Hirokazu Kore-eda e a estética mono no aware. Dissertação (mestrado em Língua, Literatura e Cultura Japonesa) – Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2023.
(4) NAGIB, L; PARENTE, A. (org). Ozu, o Extraordinário Cineasta do Cotidiano. 1ª ed. São Paulo: Marco Zero, 1990.(5) AUMONT, J. A estética do filme. 4ª ed. Campinas: Papirus, 2006.