Texto por Michiko Okano e Gisele Wolkoff
Como três países tão distintos se unem em tempos distantes? E quais são estas espacialidades e temporalidades?
Comecemos pela resposta menos complexa…
A República da Irlanda nasce como um país independente em 1922, tendo contado com escritores nacionalistas e políticos, como o próprio William Butler Yeats, nascido em 1865 e morto em 1939, e que embasam a tradição literária porque fica conhecida a terra da mitologia celta e do personagem Cuchulain, um dos protagonistas da peça de W.B.Yeats, encenada pela primeira vez em 1917, At the Hawk´s Well (No Poço do Falcão), traduzida no Brasil por Maria Helena Peixoto Kopschitz, Terezinha Sarno de Vidal Chaves e Marcelo Tápia em 1999.
O Japão, principalmente pelos tempos de reclusão do mundo ocidental, exerceu profundo fascínio neste mesmo mundo, passando a ser crescentemente alvo da imaginação e do escrutínio intelectual de vários escritores e artistas da anglofonia ao longo do século XIX – e não só. Outros povos europeus e nas Américas também se moveram em curiosidade e busca pelo conhecimento acerca do distante país que, pelas mãos de homens como Ernest Fenollosa (1853-1908), Ezra Pound (1885-1972) e o próprio W.B.Yeats, ganha formas, cores e imaginário (novos?). Bem, se não novos, adaptados, recriados, transculturados por maneiras que permitiram ao grande público, fosse pela literatura e seus detalhes, fosse pelas encenações nos palcos como o Abbey Theatre, ou nos salões das grandes exposições como as famosas de Londres e Paris, conhecer e igualmente se fascinar pelo “exótico”, misterioso, distante país…
O Brasil, como primeira nação com maior número de japoneses no mundo fora do Japão, estabelece vínculos culturais únicos com o país do sol nascente, seja pelas práticas culturais adaptadas à geografia tropical, seja pelas ricas traduções e adaptações da cena literária, artística e cultural do Japão ao universo local ao longo das décadas… Das traduções diretas e indiretas de textos os mais variados, originados no Japão, dos bairros e “guetos” nipônicos recriados, o solo da terra vermelha (“terra rossa”, como foi assim chamado o solo em que muitos imigrantes japoneses trabalharam, por influência da imigração italiana) é fértil e abarca produções as mais variadas. A segunda metade do século XX assistiu a um crescimento nos estudos japoneses e no interesse formal pela compreensão dos mundos que se cruzam, traduzem-se recriando realidades… Não foi diferente com a cultura irlandesa que viu nascer aqui e prosperar a Associação de Estudos Irlandeses no Brasil, cujo um dos pioneiros-fundadores, junto com a Profa. Munira Mutran e outros que se reuniam no Finnegan´s Pub em Pinheiros, foi precisamente aquele que muito se voltaria ao Oriente e ao Japão, Haroldo de Campos (1929-2003). A expansão do interesse dos estudos irlandeses levou à criação, inclusive, da Cátedra W.B.Yeats na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Mas, voltando às perguntas do início deste texto, vamos à segunda resposta…
A proposta d´O Poço da Mulher Falcão, dirigida por Emilie Sugai (1965-) e Fabio Mazzoni, como parte da residência artística provida pelo Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do SESC, em cartaz até 29/02 no SESC Consolação, mas já com ingressos esgotados, é uma adaptação à dança da peça do W.B.Yeats superando a confluência nipônica no teatro irlandês, de modo a confundir a audiência mais leiga. Isto significa que se Yeats propunha um entrelaçamento das culturas, uma sobreposição dos recursos cênicos do Nō no teatro ocidental, particularmente, irlandês, essa proposta avança e ultrapassa quaisquer deficiências tradutórias ou adaptativas pela técnica ultra refinada dos dançarinos.
Vale ressaltar que E. Sugai tem referências da dança Butō que aprendera com Takao Kusuno (1945-2001). E Toshi Tanaka (1960-), do teatro Nō, que estudara no Japão. No entanto, as encenações de ambos conjuntamente carregam as (re)significações tanto da dança, quanto do teatro – uma dança-teatro. Ambos, Sugai e Tanaka, nipônicos habitantes paulistanos, com experiências de vida híbridas.
É assim que a polifonia estabelecida entre as falas cantadas ao estilo Nō por meio das grossas vozes de T. Tanaka em língua japonesa, em diálogo com a oralidade em português do interlocutor Cuchulain, e os gorjeios femininos da guardiã-mulher que se torna falcão, bem como de outros intérpretes, ora suaves ora mais fortes comovem uma audiência, em geral, pouco familiarizada com hibridismos cênicos em meio ao jogo de luz, alusão ao livro Em Louvor da Sombra (1933) do escritor Junichiro Tanizaki (1886-1965).
Importa notarmos que o olhar, de cuja luz depende a visualidade, sofre um impacto: no início, a completa escuridão e depois, uma penumbra que perdura por longo tempo. Aos poucos, a íris vai se acomodando ao jogo (de menos) luz, de modo que alguns vultos começam a se esboçar, na fronteira entre o visível e o invisível, quando experienciamos o Ma, o que pode ser perturbador a alguns. Não apenas da fronteira entre o visível e o invisível se constitui o Ma em cena, mas também, no silêncio e na não ação, ambos potenciais, porque intensificam a percepção do mínimo gesto, das mínimas vozes, os gemidos que, no clímax, estouram em um forte canto de pássaros e animais, em dança frenética.
Ademais, o cenário, a iluminação e o figurino tendem ao mínimo essencial. Nada se encontra em excesso, mas os movimentos trazem transformações inesperadas: uma figura, de repente, torna-se um gigante, uma pena se mostra como asa do pássaro e um pote de incenso, objeto deixado no final do espetáculo no palco, é metonímia do poço.
Some-se à descrita riqueza da adaptação à dança da peça em versos de W.B.Yeats, o ritmo é câmera-lenta, como no Nō, e também tão presente na cinematografia japonesa, como o Drive my car (2021) do diretor Ryūsuke Hamaguchi (1978-) que conquistou o Prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar de 2022.
O que é oriental, o que é ocidental? O que de oriental ficou no Ocidente e o que de ocidental resta após tanto Oriente? Já são perguntas para além das duas propostas acima e merecem ensaios longos, trabalhos acadêmicos aprofundados… Aqui só nos resta alertar que entre a escuridão e a penumbra, a atmosfera do forte aroma de incenso que reproduz a névoa irlandesa, causando impacto não apenas no olfato, mas também na visualidade de uma plateia já confusa, entrelaçam-se os movimentos transculturais dos dançarinos tradutores/traidores, constituindo-se em espaços-entre… o que desconhecemos, o que pensamos conhecer e julgamos reconhecer. Ação, reação, transposição…a música virou dança que se transformou em luz na sombra da toada desconhecida…
Por fim, quem ainda não entendeu como se unem três países tão distintos em tempos distantes, aqui vai a dica: na ânsia pela resposta à eternidade, nos modos com que essa busca se desvela e na convergência dramática e adaptativa.
O que: peça “O Poço da Mulher-Falcão”
Onde: Centro de Pesquisa Teatral do Sesc São Paulo – Rua Dr. Vila Nova, 245 – Vila Buarque, São Paulo
Quando: 15/02, 21/02, 22/02, 28/02 e 29/02, às 20h