“Sentir é pensar sem ideias, e por isso sentir é compreender, visto que o Universo não tem ideias.” FERNANDO PESSOA
Meu primeiro contato com o termo cultural japonês ma ocorreu num grupo de pesquisa sobre o cineasta Hayao Miyazaki (1941 – ), coordenado pela professora doutora Michiko Okano. Na ocasião, estudávamos o entrecruzamento de aspectos culturais e audiovisuais na obra de Miyazaki, e nos encontrávamos regularmente em situações muito acolhedoras e, eventualmente, gastronômicas. Chegamos até a realizar uma viagem inesquecível para Cunha, num sítio paradisíaco de uma das integrantes do grupo (e deste também), a arquiteta Bassy Machado. Éramos, de fato, para além de um grupo de pesquisa.
Esta viagem foi realmente um ponto de inflexão na minha vida, pois não só me introduziu à cerâmica de alta temperatura realizada no Brasil, mas também me abriu para outras sensações e formas de criação artísticas. Criações estas mais próximas da fisicalidade e da matéria, e profundamente baseadas na manualidade e no gesto. E com uma certa elegância na economia de detalhes e na simplicidade das formas. Para não mencionar a sensação dos esmaltes nas mãos, e o modo sutil como as peças se comportam ao receber o calor do chá. Intensidades que ainda não compreendia no meu fazer, mas que foram gradativamente sendo absorvidos pelo uso e convívio. Hecceidades, como mais tarde pude estudar em Deleuze. E sim, me tornei um colecionador de peças de artistas cunhenses, quem nunca?
O silêncio em Takemitsu
Estudos no grupo também me renderam uma compreensão mais elaborada do cinema japonês, em especial com relação aos filmes Harakiri (Seppuku,1962) de Massaki Kobayashi (1916-1996) e A Mulher da Areia (Suna no Onna, 1964) de Hiroshi Teshigahara (1927-2001). Além de apresentarem narrativas densas e encadeadas por imagens contemplativas, tem suas trilhas sonoras assinadas pelo compositor Tōru Takemitsu (1930-1996).
A forma como os diretores e o compositor da trilha sonora original de ambos os filmes construíram, audiovisualmente, as sensações de tensão, suspensão temporal e contemplação me chamou muito a atenção. Já era um assíduo admirador do cinema japonês, mas foi ao assistir Harakiri e A Mulher da Areia que me interessei por algo muito específico da cultura japonesa, o termo cultural ma.
A articulação das pausas, das notas longas que se fundem com as pausas; a sobreposição de planos com imagens vazias de sentido para o pensamento, mas repletas de intensidades para o sentir. Compreensível na sensação, mas demasiadamente etéreo para o pensar. Transições de imagens e sonoridades que vão muito além da montagem cinematográfica ocidental – ainda que o princípio de montagem cinematográfico das vanguardas soviéticas tenha sido baseado no haikai. Uma construção cênica e dramatúrgica toda tecida na expectativa de ação e em seus hiatos. Suas frestas. Seus vazios. Uma constante tensão que se sustenta nessa temporalidade outra, não espacializada e organizada a partir da sucessão linear de eventos, mas escoada numa aglutinação de imagens, sensações, emoções e pensamentos, todos interpenetrados uns nos/aos outros, num contínuo fluir, numa duração. Uma suspensão temporal deste tempo métrico, regido por Cronus, para um deleite nesta temporalidade bergsoniana duracional, que nos agracia com essa sensação “de que nada acontece, mas o tempo passa”, manifesta por gestos singelos, olhares pontuais e muita escuta.
E que som tem esse tempo passando, escorrendo pelas penumbras da imagem, nas extremidades da montagem? Que som tem um pensamento, um desejo, uma angústia? A estas perguntas, Takemitsu apresenta uma complexa paleta sensorial de estilos e texturas, que aproximam seu interesse na exploração do silêncio na estrutura composicional da música de Anton Webern (1883-1945), aos fazeres musicais tradicionais japoneses. Em Mulher da Areia, justapõe glissandos em divises de cordas a peças de percussão asiáticas, desterritorializando timbres e texturas, numa experiência de distensão temporal provocada por esse eterno “ficar mais agudo”. Um prolongamento sonoro da tensão que se estabelece em cena, ou ainda, da plasticidade dessa tensão. Em outra situação, propõe uma tensão com uma sequência rítmica de taikos, ao mesmo tempo em que ressignifica tradições ritualísticas e tribalistas japonesas. Já em Harakiri, Takemitsu se apropria do silêncio e da tensão sustentada pela situação de iminência de combate ao propor o contraste entre o som do vento e as cordas do shamisen. Estabelece suas motivações temáticas neste hiato existente entre a intenção e a realização, entre o desejo de vingança e sua consumação. Desenha transversais no intervalo entre as falas, nas trocas de olhares, no gesto que ainda não se presentificou; nesse escoamento que vai se adensando e se tensionando na medida em que as intenções são reveladas. Ma.
Ainda que essa leitura crítica não fosse possível naquela época, percebo o quanto tais experiências moldaram meus caminhos e minhas escolhas artísticas desde então. Estamos falando dos anos de 2010 e 2011, anos que precederam o início de um intenso período entre 2012 e 2016, em que realizei, por ano, duas ou três residências artísticas internacionais.
Tempo Suspenso
Um trabalho artístico muito significativo desta transformação no sentir ao qual me refiro é a performance Le temps suspendu (O tempo suspenso), apresentada pela primeira vez em novembro de 2012 na Cité Internationale des Arts de Paris, em Paris, França.
Em Le temps suspendu, propus composições sonoras que buscavam traduzir a sensação de suspensão temporal vivenciada em rituais contemplativos de gravação de áudio em espaço público. Utilizava tais gravações para criação de texturas sonoras a serem manipuladas em cena, em justaposição e sobreposição às criações melódicas e harmônicas ao piano e em sintetizadores. Me impressionava com a riqueza de detalhes dessas situações, dos micro-universos contidos nesses sons ao mesmo tempo íntimos e públicos; passava horas gravando aqueles sons, contemplando aquelas situações, como uma meditação; num outro momento, estava a buscar situações que me seduzissem da mesma forma.
Na realidade, comecei a realizar as gravações para a concepção da instalação PariSound, realizada dentro do programa de residência artística Internationales Résidences aux Récolletes, Paris, em outubro, novembro e dezembro de 2012 (e apresentada na Mostra Sonora Paço do Paço das Artes de São Paulo em 2013). E no meio desse processo me deparei com esta preciosidade inesperada. Foi, sem dúvida, um dos períodos mais intensos e interessantes da minha vida, já que era minha primeira residência artística e minha primeira aproximação intencional daquilo que até então conhecia como uma experiência externa a mim.
Ma advinha, portanto, desse entre-espaço, dessa duração intervalar que eu praticava durante as gravações por não poder me movimentar e fazer qualquer ruído. Tais limites e limitações ocasionaram no meu primeiro exercício meditativo sonoro de experimentação da espacialidade ma.
Grandes Viagens
Durante um período de residência artística no Japão, pude verdadeiramente compreender a complexidade singular de ma. Complexidade dada suas múltiplas formas de manifestação cultural e fenomenológica, como bem apontou Michiko Okano em sua tese de doutorado. Singular pela simplicidade como se coloca diante do nosso sentir. Sentimos, e isso basta.
Visitando diferentes santuários xintoístas e templos budistas em cidades históricas como Nikko, Nagano e Kyoto, pude sentir a espacialidade ma na forma de concepção espacial e organizacional dos edifícios e áreas verdes. Templos e santuários estão sempre circunscritos num espaço que os separa de seus arredores e da malha urbana. As áreas do entorno dos edifícios do templo ou do santuário, que podem compreender bosques, caminhos, montanhas e espaços vazios são constituintes e intrínsecos a este local sagrado. Na realidade, é ainda mais interessante: são os espaços vazios dentre os edifícios e construções dos templos e santuários que rendem sua divindade. Quanto maiores e mais abertos forem estes espaços, maior a sensação de se estar imerso num local sagrado. Nesta situação muito específica da cultura tradicional japonesa, portanto, a espacialidade ma se presentifica enquanto o divino, o sagrado, através desta sensação indescritível e intangível de sentir a divindade daquele local nos seus hiatos e intervalos espaciais.
Em minhas primeiras tentativas de compreensão teórica da espacialidade ma, me debrucei sobre a sensorialidade de suas presentificações buscando entender uma forma de incorporá-la em minhas operações poéticas. Durante este período de residência, dei início aos meus primeiros passos na compreensão e tradução cultural da espacialidade ma, e sua aterrizagem poética enquanto conceito dentro do processo criativo. Digamos que foi um grande segundo passo, que rendeu a criação da instalação intitulada Ma, apresentada em Tokyo, ao final da residência artística.
Deserto de sal
Em 2016, fui convidado para participar da IX Bienal de La Paz, acontecimento que verdadeiramente transformou minha relação artística com a espacialidade ma. Aproveitando a oportuna situação, sem muita certeza de como resultaria tal aposta artística, decidi realizar uma performance no deserto de sal. Agenciei tal desejo convidando a designer e estilista Valentina Soares (1982 – ) que, em parceria com o também designer e estilista Alex Cassimiro (1979 – ), criaram uma peça de vestimenta de 10 metros para duas pessoas. A cor? Da cor do deserto, um branco levemente puxado para o creme.
Fiz um grande salto em meu processo para não me estender muito até esse momento. Entre o Le Temps Suspendu e o Estudio para el tempo suspendido ma (Estudo para o tempo suspendido ma) se passaram 4 longos anos de muita experimentação artística e um mestrado. Mas me interessa retratar esse recorte, pois foi nesse trabalho que me deparei novamente com a perspectiva de meditação em ação, mas dessa vez, tal meditação consistia da obra em si.
Vamos dizer que, até a criação desse trabalho, meus projetos lidavam com essa aproximação meditativa sonora espacial ao ma. Em Estudio para el tempo suspendido ma, eu encarno a duração metaestável de ma como uma intensidade da ação de contrapeso proposta.
A tensão física de contrapeso se torna o elemento mais evidente da ação, nos condicionando a uma leitura do conceito japonês de ma a partir deste devir (des)equilíbrio de escuta e percepção do outro através da conexão no espaço. O silêncio e a expectativa da ação geram e perpetuam a tensão espacial e a suspensão temporal na eterna iminência de acontecimento.
Em equilíbrio metaestável a ação de contrapeso atinge seu nível máximo de tensão num devir polissêmico que engloba todas as possibilidades. A ação se assemelha a uma fotografia por sua estaticidade, mas oculta pela distância do espectador toda sua movimentação e tensão vetorial variante oriundas da ação de contrapeso dinâmica realizada pelos performers. A semelhança tonal de cores de fundo e figura e a baixíssima quantidade de informações imagéticas reforçam ainda mais esta sensação de suspensão temporal, trazendo todo o espaço de seu entorno para um estado contemplativo, quase pictórico.
Em sua realização instalativa, sua ambiguidade imagética se torna ainda mais evidente, posto que a percepção de movimentação se torna ainda menor, sendo apenas possível perceber algumas ondulações no tecido. O movimento do tecido ao vento, por sua vez, cria sensações sinestésicas de sonoridade e temperatura com seu ritmo e inconstância: suas quase imperceptíveis ondulações tornam o tempo tangível, ainda que suspenso e fotográfico.
Para ler mais sobre o trabalho do artista:
- TSUDA, Carlos Eduardo. ESTUDO PARA O TEMPO SUSPENSO MA: DEVIR AMBIENTE E SUSPENSÃO TEMPORAL COMO AGENCIAMENTO. p. 1019. ANAIS da 3ª. Jornada Internacional de Pesquisa em Artes da UNESP 2019.
- Site pessoal do artista.