Tambores, percussão, vozes – canto. Encanto em imagens. Dia quatorze de julho, uma data tão representativa no universo ocidental da política e da sociedade modernas, foi dia de presenciar uma parte do Festival de Gion, o Gion Matsuri, em Kyoto. Fazia um calor praticamente tropical e nos aventuramos pela rua Shijō (Shijō-dōri) ao longo da qual vários carros alegóricos, santuários portáteis, dispunham-se aos que quisessem conhecer um pouco da milenar cultura xintoísta. O festival remonta o século IX e o imperador Seiwa (850 – 881) que, face as tremendas pragas e desgraças a que vinha sendo exposta a população, solicitou ao povo que orasse no santuário de Yasaka. Desde então, os rituais para acalmar os deuses e prevenir enchentes, incêndios e pragas passaram a ser públicos. No século XVI, porém, o shogunato Ashikaga proibiu tais rituais, mas a população se insurgiu exigindo minimamente que houvesse a procissão, que se tornou o evento anual a que assistimos hoje! É um espetáculo de beleza desta parte do Oriente, que traz dois tipos de carros (os Hoko e os Yama: os primeiros, mais altos e com maior número de participantes e os segundos, menores e, portanto, com um número menor de pessoas). Ambos, no entanto, exibiam tapeçarias de Nishijin, que historicamente reúne a tapeçaria mais fina do mundo inteiro, e que foram doadas pelos comerciantes locais após a destruição de muitos destes “carros” e objetos no século XVI, quando houve a tentativa de acabar com estes (e outros) rituais focados em acalmar os deuses e abençoar as plantações e colheitas de arroz e demais cereais. Além dos portentosos santuários que se movem, com inscrições em inglês (além do japonês) acerca dos episódios que consagram e que têm a ver com vinte e quatro histórias de Confúcio (as quais nos remetem a temas de fé) há as lamparinas, que hoje são identificadas como produções de saquê em outros lados da cidade (e do país) e os muitos ornamentos em ouro, e que também podem ser vistos nas casas da região central que se abrem durante o festival para visitas e ostentam as suas tradicionais heranças seculares. É uma festa popular, com apoio dos comerciantes e demais grupos. E nas ruas perpendiculares à Shijō, é possível ver outras tantas barracas com comércio de comida e objetos típicos, o principal deles, os “bilhetinhos” xintoístas com mensagens de sorte. As mulheres aproveitam a desfilar os seus yukata e as suas belas maquiagens nos rostos e modos de se ornamentar. Uma festa aos olhos, aos ouvidos e ao paladar – aos que se despreendem de quaisquer embates culturais.
As multidões surpreendem. Kyoto tem sempre muita presença estrangeira. Mas, nesta época, há gente do país todo que visita a cidade para celebrar o Matsuri. Os restaurantes ficam cheios e mal se pode andar pelas ruas, ainda menos pelas avenidas. Os turistas parecem chegar de Osaka. Mas, não só. São de todo o lado! E ainda bem! Isso é diversidade! Um país que também tem miscigenação, e preconceitos (como no Brasil). Um país cheio de silêncios, que deixa de se calar tanto no Festival de Gion. Mas o que é silenciado por muito tempo passa a ser silencioso, como tudo o que é hábito…! Afinal, budistas também celebram algo xintoísta. Como festa, dizem-me. Mais como orgulho nacional, feito o candomblé e o catolicismo no Brasil (?).
Na terça-feira, dezessete de julho, desde o início da manhã, ficamos à espera dos carros alegóricos que a partir das nove e meia moveram-se num exuberante desfile; desta vez, com outro aspecto do que apresentavam na noite do sábado. O sol gritava forte a sua luz na avenida, e os bailarinos e os músicos se desmanchavam em vermelho e branco ao longo dela! O sol escaldante e o calor não impacientavam os jovens em torno dos Yama ou os mais velhos, no Hoko, que foi a grande surpresa da manhã, pois abriu o festival com sua imponência, em vermelho, em sol reluzente! As hastes inspiradoras, tradicionais, com os sons de tambores e flautas e canto, em meio à modernidade da Shijō a nos lembrar de que somos e estamos todos muito além das selvas de pedras, muito antes delas, e estaremos sempre para além das mesmas… Somos braços, pernas, vozes. Somos corpos com almas que não se esquecem de agradecer. E já me sinto familiarizada com o festival bem aí, onde o sol é. Onde o sol impera. E nos esquecemos da selvageria do concreto, em pleno concreto. Somos. As empresas da região foram avisadas. E, também, avisaram. Era dia de festival. Por um dia, há o Matsuri. Pelo menos por este dia, somos humanos.
A terça-feira seguinte ao dezessete de julho, vinte e quatro, é dia de celebrar as divindades que desfilam no Mikoshi e porque têm orado os que cultuam Yasaka. Será a etapa final do festival. São três “carros alegóricos” dos mais importantes. As ruas estão cheias novamente e o trânsito parado. Mas podemos ouvir fortes “oitooitooitooito” (que nada tem a ver com o “oito” em língua portuguesa) entoado nas vozes masculinas e as centenas de braços em movimentos intensos – que lembram os de uma dança ritual – levantando os “carros”, numa espécie de convulsão da fé, uma exclamação eufórica da vida que pulsa em todos nós! Comoção dos que participam. E dos que assistem. À noite, os vapores exalados de saquê e de suor se mesclam e os braços se estendem ao alto, carregando o último dos “carros”, ainda mais efusivo, no ritmo da parada final, em que os homens em branco e preto deslizam-se com os seus objetos rituais pela Teramachi–dōri (rua dos templos) em direção à Shijō, onde iniciaram a celebração! O sol se pôs nas horas estendidas do verão, é noite e o branco e o preto emanam o ruído do silêncio rompido!
A cena final também traz o cavalo do santuário no desfile e a pergunta: o que será do menininho que abriu o festival com seu corte certeiro na corda? E os homens distantes das mulheres com medo de alguma estrangeira louca se aventurar novamente, como já aconteceu, e querer tocar nos seus “carros”, a destruir toda a simbologia do ritual de purificação que discrimina mulheres como impuras, feito outras tradições culturais?
Ficará na memória o som dos tambores e das vozes, das flautas e do carro alegórico com ornamentos chineses… Para sempre, as imagens trarão o aroma dos “Shimaki” servidos sem parcimônia, atipicamente, nesta época. Mas, sobretudo, do espanto dos que como eu, naquela ensolarada manhã, assistiam a entrada do primeiro Hoko, tão rico, com seus homens ornamentados que se misturavam às peças tradicionais, cordas e tapetes, além dos instrumentos musicais. Depois, a virada à Shijō-dōri, mais uma vez, lembrando-nos de que é de seres humanos que este mundo de Deus é feito, antes de motores, máquinas, vapores… É de música e de sentimento que uma cultura se desdobra…! E do quão semelhantes podem ser culturas tão distantes…do quão convergentes podem ser os rituais religiosos e sociais, conforme definiram pensadores como Carl Jung e Joseph Campbell…
A noite acabou. O som parou. A alma ficou em alegria, sem o silêncio que, por vezes, por mais iluminador que seja, pode ser também desesperador!
Texto brilhante, remetendo-nos para os encantos das descobertas culturais que a Literatura de Viagens nos ofereceu, ainda há poucos séculos atrás.
Experiência magnífica de sons, cheiros, multiplicidade cromática em obediência ao vermelho, carros alegóricos e dançarinos ao som do ritmo musical, comandado pelo rufar dos tambores, a coroar toda a magia que a todos ps presentes, na sua diversidade cultural, se oferecia firme e imponente.
Muito obrigada, amiga Gisele, pelo teu belíssimo texto. Conseguiste, neste final de tarde fria de janeiro em Portugal, levar-me contigo à tua belíssima, e certamente inesquecível, viagem no passado, quem sabe se no futuro ?!…
Muito obrigada, amiga Carmen, pela leitura atenciosa e comentário! Excelente tê-la como nossa leitora! E viajante a este meu passado! Quem sabe numa próxima ida a Portugal, seguimos ao Japão juntas?