Desde 1997, a icônica revista de subcultura e moda de rua FRUiTS registrava crianças e jovens em vestimentas criativas e fora dos padrões sociais que circulavam pela região de Harajuku, em Tokyo. Para a infelicidade dos entusiastas da revista, seu criador e editor, Shoichi Aoki (1955-), encerrou as atividades da publicação em 2017 sob a declaração de que “there are no more cool kids to photograph” (não há mais crianças legais para se fotografar).
Apesar desse triste e polêmico fim, o editor Chris Tordoff (especialista em publicidade e editoração de mangás, residente em Tóquio) buscou autorização para migrar essas fotos para o meio digital, para não permitir que essa obra ficasse nas sombras para os jovens da atualidade. Em meados de 2019, Tordoff criou então o instagram @fruits_magazine_archives, onde posta fotos das edições publicadas ao longo dos 20 anos da revista. Mas primeiramente, vamos entender um pouco da história desse insólito fruto.
Com uma juventude crescendo em meio ao período turbulento de recessão econômica do Japão dos anos 1990, floresceram grupos subculturais e tribos underground que revolucionaram os comportamentos e maneiras de se vestir da sociedade japonesa. Muitos destes foram os embriões que originaram fenômenos conhecidos mundialmente na atualidade, tais como o estilo Lolita e o Decora. A revista FRUiTS não apenas documentou este momento efervescente e único do street fashion, como também foi um elemento ativo na criação de novas estéticas.
Shoichi Aoki havia trabalhado em Londres nos anos 1980 fotografando estilos excêntricos e fora dos padrões vistos nas ruas inglesas. Quando voltou ao Japão em 1996, Aoki percebeu que estava nascendo uma nova moda nas ruas de Harajuku no bairro de Shibuya, e sentiu que aquilo deveria ser registrado. Então, decidiu criar o projeto FRUiTS. Considerando que as mídias digitais da época eram limitadas e a circulação de imagens não era tão intensa e acessível, tal como é na internet atualmente, as edições mensais da revista formaram um arquivo consideravelmente raro.
Os jovens da FRUiTS são subversivos e inventivos. Grande parte das peças eram feitas à mão (incorpora-se aqui a cultura diy, ou “faça você mesmo”), ressaltando a singularidade de quem as usa. Os looks fotografados possuem a peculiaridade de serem combinações que terão apenas algumas horas de duração e trazem um quê de efemeridade, pois dificilmente eles serão reproduzidos de novo. Na próxima vez serão outros arranjos, outras combinações, outros penteados e acessórios, acompanhando assim o estado de espírito e a criatividade da pessoa.
As fotografias da revista abriam horizontes não apenas para a moda, mas também para a esfera social do país, contribuindo com a expressão de uma juventude sedenta por explorar sua individualidade e possibilidades. Inclusive, é difícil falar de “moda” em FRUiTS se encarada como tendência de vestimenta ou produto mercadológico. Neste sentido, o estilo FRUiTS poderia ser visto mais como anti-moda, pois os fotografados não se vestiam para se encaixar em determinados grupos pré-definidos (ainda que eles tenham surgido naturalmente com o tempo), nem para seguir modelos da indústria. Tais looks são composições de identidade e tempo, de mistos de revolta e diversão, alegria e solidão. Trazem a busca pela própria singularidade e pelo lugar a que se pertence em um mundo de tabus rejeitados por estes adolescentes.
Aoki diz que em sua opinião, não há mensagem clara de rebelião ou valor político por trás desse fenômeno em Harajuku. Contudo, a socióloga Yuniya Kawamura, professora no Fashion Institute of Technology (FIT) da State University of New York, coloca, em entrevista à BBC Culture, que: “Não se trata apenas de um grupo de jovens em roupas distintas. Sua expressão estilística é um reflexo de seus valores, normas, crenças. O surgimento de uma subcultura significa que existe uma comunidade tentando enviar uma mensagem social ao público. Às vezes, os próprios membros nem estão cientes disso”.
Muito provavelmente alguns desses jovens não tinham claras em mente quais mensagens gostariam de transmitir. Em contrapartida, outros já possuíam alguma noção de como colocar as suas ideias. Um exemplo disso são as “garotas Ganguro“. Elas são caracterizadas por um forte bronzeado artificial, cabelos descoloridos em tons de loiro ou coloridos em laranja, e sombras e batons brancos ou prateados, adquirindo o famoso efeito “panda invertido”. Tal estilo contesta e inverte o padrão de beleza tradicional japonês onde a pele de uma garota precisa ser o mais clara possível.
Além da pele escurecida, as Ganguro trazem uma atitude expansiva e abusada, em oposição à postura retraída e tímida das meninas kawaii, como normalmente os códigos de comportamento feminino japonês devem seguir. Elas usam cores neon e chamativas, botas de cano alto, acessórios extravagantes e colares havaianos. O nascimento desse estilo absorveu referências estadunidenses da Califórnia e de cantoras de hip hop como Lauryn Hill e as TLC.
Segundo Kawamura, as Ganguro bebiam, fumavam, falavam alto e tinham comportamentos agressivos, como quem diz “festeje muito enquanto é jovem, pois amanhã você se tornará um adulto decente por ter feito tudo o que queria.” Muitas delas sofreram retaliações da sociedade, sendo chamadas de sujas, porcas, doentes, dentre outras hostilidades.
As Ganguro se transformaram em uma tribo com seus próprios códigos de vestimenta, mas algumas de suas primeiras “aparições” foram registradas pela revista FRUiTS, antes mesmo de carregarem um nome que as especificasse. Elas também são conhecidas como Yamanbas, em referência ao yōkai Yama-uba (山姥) – o espírito do folclore xintoísta de uma senhora de cabelos esvoaçantes que vive nas montanhas.
Certamente, as Yamanbas e outros adolescentes frequentadores das ruas de Harajuku transmitiram muitas ideias inovadoras à sociedade através das fotos da revista FRUiTS, ainda que eles mesmos estivessem buscando primordialmente apenas se divertir e se encontrar em meio à multidão. Contudo, o fim da revista levantou a discussão de Harajuku estar caindo ou não na cultura mainstream, e sucumbindo às lojas de departamento e padrões industriais.
Aoki aponta para o fato desses grupos culturais terem se tornado modelos e estereótipos seguidos por países estrangeiros, vide o videoclipe Harajuku Girls da Gwen Stefani, onde há quatro bailarinas vestidas no estilo colegial kawaii– as mesmas peças usadas por muitas adolescentes nas ruas de Tóquio. Com grupos de jovens se vestindo de forma idêntica para sair às ruas em bandos uniformizados, Shoichi comenta que não possuía mais material suficiente para publicar mensalmente, pois segundo ele, precisava procurar muito para conseguir boas fotos.
Ele ressalta que estas estéticas não mais acompanham um estilo de vida. Poucas são Lolitas 24h/dia, por exemplo. Evidentemente, podemos pensar que mesmo na era de ouro da revista FRUiTS, aqueles adolescentes não se vestiam daquela maneira em atividades cotidianas como ir ao supermercado (ou talvez sim). Por outro lado, compreende-se a sensação do fotógrafo de que muitos desses jovens extravagantes encontrados atualmente vestem uma espécie de fantasia aos fins de semana em Harajuku, e isto difere um tanto do que ele via nas décadas passadas.
Porém, não há motivo para sermos pessimistas. A própria criação e fama do arquivo FRUiTS no Instagram revela a confiança de Shoichi e de várias outras pessoas na juventude, que está viva e se renovando através dos tempos. Mais do que isso, de que é necessária uma adaptação constante dos materiais que uma vez já serviram como inspiração em revoluções no passado, para que assim possam nascer novas ideias e novos cool kids.
Referências:
BAKER, Lindsay. The outrageous street-style tribes of Harajuku. BBC Culture. 2017.
KAWAMURA, Yuniya. Fashioning Japanese Subcultures. London: Berg/Bloomsbury, 2012
KAWAMURA, Yuniya. Japanese youth subcultures as an alternative fashion system and a new business model. In: NAKANO, Tsutomu (Ed.). Japanese management in evolution: new directions, breaks, and emerging practices. London: Routledge, 2018.
LIU, Xuexin. Ganguro in Japanese youth culture: self-identity in cultural conflict. Japanese Studies Review, Miami, v. XIII, p. 51-70, 2009.