Enquanto as Olimpíadas de Tokyo 2021 não acontecem, um bom modo de entrar no clima do evento esportivo é assistir ao filme Tokyo Olympiad (Olimpíada de Tokyo) do diretor japonês Kon Ichikawa (1915 – 2008). O documentário lançado em 1965 é uma das obras mais marcantes sobre o evento realizadas no século XX; no entanto permanece menos reconhecida que a controversa Olympia (1938) da cineasta alemã Leni Riefenstahl (1902 – 2003). Feito sob encomenda governamental e institucional, o filme trata das Olimpíadas de 1964 que aconteceram em Tokyo no clima de reconstrução do pós-guerra que assolava o país.
Originalmente, o projeto seria dirigido por Akira Kurosawa (1910-1998), que tinha intenção de realizar também a cerimônia de abertura, mas o diretor logo se afastou ao perceber que não conseguiria ter o mesmo nível de controle criativo de suas produções. Em seu lugar, Kon Ichikawa, conhecido por sua versatilidade, assume o projeto. Por ser muito habilidoso em seu ofício, Ichikawa era frequentemente chamado por estúdios para “salvar” filmes perdidos ou abandonados. O crítico Tadao Sato (1930-), comenta que entre os produtores, Ichikawa era visto mais como enshutsu (diretor de cena do que kantoku (diretor/produtor/supervisor), que é a palavra mais comum para designar diretores de cinema no Japão.
Tão megalomaníaco quanto o evento, o filme foi realizado em meio a exigências do Comitê Olímpico para registrar o acontecimento de forma abrangente, e do governo local e nacional, que queriam afirmar com o filme que o país havia se recuperado desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Contando com inúmeras câmeras, cinegrafistas, técnicos de som, rolos de filme e lentes, o documentário é tecnicamente impecável e demonstra toda a habilidade de Ichikawa. No entanto, segundo o professor Markus Nornes da Universidade de Michigan, especialista em documentários japoneses, tudo isso não foi o suficiente para que as instituições que encomendaram o filme ficassem satisfeitas com o resultado. Enquanto o Comitê Olímpico não se contentou com o registro, instituições governamentais japonesas desejavam que o filme contivesse mais cenas das novas arenas, da nova Tokyo, da bandeira japonesa, dos atletas japoneses e da família Imperial japonesa.
As diferentes metragens em que o filme foi lançado reflete um pouco essas insatisfações. A versão encontrada na página do YouTube oficial de Olympiad possui 125 minutos, enquanto o filme comercializado em formatos digitais internacionalmente conta com 170 minutos. No Festival de Cannes de 1965, foi exibida uma versão com 156 minutos e após ser aclamado pela crítica internacional, o documentário foi um sucesso de público no Japão.
Versão mais curta do documentário disponível no canal oficial do YouTube das Olimpíadas
Em relação à linguagem cinematográfica, um pouco de tudo pode ser encontrado no filme: desde câmeras lentas, sobreposições, uso de fotografias, e imagens coloridas e em preto e branco. A utilização de comparações visuais é constante e pode ser vista já no início do filme, quando ocorre o corte da imagem do Sol nascente para a bola de demolição que destrói edifícios na cidade, sinalizando a renovação urbana resultante das Olimpíadas.
Enquanto as competições são mostradas com temporalidades que destacam o esforço corporal e emocional dos atletas, a plateia e o público são pegos em momentos espontâneos que demonstram a excitação e a angústia de assistir aos jogos. A casualidade com que o evento toma conta do país também tem seus momentos. No percurso da tocha olímpica pelo Japão, vemos o modo que o evento mexe com os ânimos locais quando pessoas se espremem nas ruas para ver ao vivo o fogo. Já na longa sequência da maratona que fecha o filme, observamos durante muito tempo o trabalho das pessoas que distribuem esponjas e copos de bebidas para os corredores se refrescarem.
Se o que vemos no documentário não satisfez os órgãos que encomendaram o filme, é possível dizer também que o que não vemos – e sabemos apenas ao pesquisar um pouco sobre a produção – ganha outro significado. O jovem Yoshinori Sakai (1945 – 2014) que acende a tocha olímpica, por exemplo, foi escolhido especificamente por ter nascido em Hiroshima no dia em que a bomba atômica caiu na cidade, na intenção de demonstrar o renascimento do país.
Por outro lado, Tokyo ao final dos anos 1950 e início dos 1960 passava por uma política interna turbulenta decorrente da revisão do Tratado de Cooperação Mútua e Segurança entre os Estados Unidos e o Japão em 1960. Protestos estudantis com pautas diversas eram frequentes na cidade e foram registrados por cineastas como Motoharu Jonouchi (1935 – 1986) e Noriaki Tsuchimoto (1928 – 2008).
Como é de se esperar, não há menções a movimentos sociais desse gênero no filme. No entanto, existe um esforço em registrar a diversidade de nacionalidades presentes no evento, decorrente também do recente processo de descolonização africana. Durante o filme, acompanhamos brevemente um atleta da República do Chade, país que havia adquirido sua independência da França apenas em 1960. Mesmo que sua presença nos jogos seja sempre solitária e um pouco melancólica, o tempo dedicado a ele como representante de seu país atesta sua nacionalidade como legítima. Como se sabe, o reconhecimento olímpico de nações é com certa frequência alvo de debates durante os eventos.
Por essas e muitas outras características, Tokyo Olympiad é um dos grandes encontros entre o cinema e as Olimpíadas. Mais recentemente, tornou-se comum que diretores reconhecidos dirijam as cerimônias de abertura do evento, como era desejado por Akira Kurosawa. Cineastas como Fernando Meirelles (1955 – ), Danny Boyle (1956 – ) e Zhang Yimou (1951 – ) foram os últimos a terem esse mérito.
As Olimpíadas de 2020 (agora de 2021) terão a cineasta Naomi Kawase (1969 – ) como documentarista oficial. Já prevendo uma das controvérsias possíveis do futuro filme (ou filmes), será interessante ver como a pandemia de covid-19 será tratada – ou não – na história do evento. Mas enquanto a incerteza sobre as Olimpíadas permanece, o documentário de Ichikawa merece todo o reconhecimento como filme desse evento, que é sempre envolto de controvérsias e discussões políticas.