Dentre os diretores de anime mais conhecidos no mundo, Hayao Miyazaki (1941 – ), co-fundador do Studio Ghibli traz em sua trajetória mais de uma dezena de longas-metragens animados, além também de muitos outros curtas. De Nausicaä do Vale do Vento (Kaze no Tani no Naushika, 1984) a Vidas ao Vento (Kaze Tachinu, 2013), os voos de Miyazaki aterrissam nos mais diversos cantos do globo, transformando as ideias de Japão no imaginário de crianças e adultos com seu modo tão particular de contar histórias.
As produções do diretor japonês abordam temáticas variadas, como a relação entre humanos e natureza, o ativismo anti-guerra, a passagem da infância à adolescência, o protagonismo e a independência feminina, dentre tantos outros. Em meio à diversidade de histórias e personagens, uma característica em comum das narrativas se destaca: cenas e construções narrativas nas quais “nada acontece”.
Robin E. Brenner, estudiosa de cultura pop japonesa, no livro Understanding Manga and Anime (Compreendendo mangá e anime, 2007), argumenta que existe um certo aspecto nos filmes de Miyazaki ao qual se refere como pacing, algo como um “desacelerar” da história, um momento de contemplação sugerido.
Foi pesquisando sobre os filmes de Miyazaki que me deparei com um vídeo do youtuber Max Valarezo. Com o título Hayao Miyazaki: A Importância do Vazio (2016) Valarezo desenvolve uma relação entre os filmes do diretor japonês e a ideia de ma (間).
Foi tocado pelas propostas de Valarezo que iniciei uma pesquisa que me levou ao livro da professora Michiko Okano, Ma – entre espaço da arte e comunicação no Japão (Annablume, 2012), e muitas outras possibilidades se apresentaram a mim para abordar a estética japonesa.
Sobre essa temática, acabei desenvolvendo meu trabalho de conclusão de curso de graduação em Comunicação junto ao Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará. Na pesquisa, que intitulei Deslocamentos espaço-temporais: espacialidades ma (間) em “A viagem de Chihiro”, de Hayao Miyazaki, propus alguns olhares acerca desses processos comunicativos sugeridos pelo cineasta.
Entendendo o ma como uma possibilidade anterior à existência concreta de algo e que é passível de manifestação de maneiras plurais, como, por exemplo, num silêncio, num vazio, numa pausa ou num espaço intervalar, a partir dos estudos da professora Michiko, busquei relacionar alguns aspectos da narrativa do que se tornou talvez um dos mais conhecidos filmes de animação japonesa.
A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001), narra a saga de uma garota no fim da infância que está mudando de cidade. Irritada por ter que deixar a vida antiga e amigos para trás, Chihiro mostra resistência em aceitar as transformações em sua vida
Após passar por uma situação inusitada na qual seus pais são transformados em porcos, a protagonista se vê introduzida a um outro mundo, um território dominado por kami (神, divindades) e espíritos do folclore japonês. Desesperada com a situação, a garota aceita a única possibilidade que lhe é apresentada se quiser salvar os pais e fugir dali: pedir emprego na casa de banhos da bruxa Yubaba.
No decorrer de todo o filme, nos deparamos com o que identifiquei, no estudo, como possíveis diálogos com a ideia tradicional de ma. Vejamos:
A passagem para o outro mundo
Num primeiro momento do filme, Chihiro é deslocada de sua vida comum, daí a expressão kamikakushi do título em japonês, que significa algo como “desaparecimento do mundo material pela ação das divindades”.
O diálogo com ma, nesse caso, se manifesta na suspensão da vida cotidiana da protagonista, o que potencializa os eventos que se seguem. A ida de Chihiro ao outro mundo faz com que ela enfrente desafios que a transformam.
Visualmente, essa passagem se mostra a partir de dois elementos que identifiquei como mais relevantes imageticamente no longa: o túnel e a ponte.
O túnel e a ponte
Por meio do túnel, Chihiro e seus pais fazem a travessia do mundo dos humanos para o terreno dos espíritos. O túnel se mostra, assim, como lugar intermediário entre esses dois universos de possibilidades distintas.
Segundo a professora Michiko no livro citado, qualitativamente, o elemento da ponte, na cultura japonesa, tem a função concreta de espaço intervalar, um entre-lugar que conecta territórios diferentes, como uma analogia à ideia de ma.
É na ponte para a casa de banhos da bruxa Yubaba que acontece um dos encontros mais importantes do filme, quando Chihiro e o personagem Sem Rosto (Kaonashi) se veem pela primeira vez.
O roubo do nome
Após os pedidos incansáveis de Chihiro, Yubaba contrata a garota para trabalhar no estabelecimento. Chihiro assina o contrato com os ideogramas de seu nome, 荻野 千尋 (Ogino Chihiro). Alguns, então, são roubados pela bruxa, restando apenas 千, que passa a ser lido com a leitura chinesa (Sen).
A prática de Yubaba se revela como uma tentativa de controle sobre a identidade da protagonista. Nossa heroína, no entanto, encontra outra identidade intermediária no espaço entre Chihiro e Sen, construindo uma nova personalidade amadurecida, possibilitada pelos aprendizados que adquire nesse espaço-tempo suspenso no qual o filme se estende.
A viagem de trem
Por fim, chegamos ao clímax da narrativa do longa, quando Chihiro, Sem Rosto e outros companheiros precisam fazer uma viagem de trem para salvar o personagem Haku, embarcando, então, numa locomotiva que leva a placa 中道 (chūdō ou nakamichi, literalmente: meio do caminho ou caminho do meio, outro possível diálogo com ma, e uma ideia importante para as crenças budistas).
O trajeto, que dura quase três minutos de exibição, é realizado pelos personagens num vagão onde os outros passageiros são apenas sombras, não possuem rosto nem nome, tampouco falam ou emitem qualquer tipo de som.
Toda a cena é montada sonoramente com uma trilha sutil. As notas de piano pensadas pelo compositor Joe Hisaishi (1950 – ) dialogam com as imagens nos imergindo em um estado quase de sonho, no qual não há diálogo entre nenhum dos presentes.
Chihiro, neste momento, não é mais a garota birrenta do início da jornada, mas uma outra possibilidade de sua existência, transformada pela potencialidade do espaço-tempo intervalar.
Esses são alguns dos elementos que articulei ao longo do trabalho desenvolvido. Como escrevi ao fim da análise realizada: “pensamos ser o silêncio aqui necessário, a pausa se mostrando essencial. Longe de uma suposta ausência de algo a ser comunicado — ou tornado comum — o vazio, o silêncio e a pausa que, neste caso, caracterizam o diálogo com ma, elevam a potencialidade interpretativa da cena, sugerindo ao(à) espectador(a) maneiras múltiplas de pensar a viagem de Chihiro.”
Sensacional, gostaria de wue cada um pudesse expressar o que pensa sobre esse momento do trem e essas sombras, casas isoladas que aparecem!
Gostei muito de ler sobre uma das minhas animações preferidas!